Desapropriação: União terá que indenizar ex-proprietários de fazenda posteriormente declarada terra indígena
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“Duas empresas madeireiras do município de Palmas, na região Centro-Sul paranaense, deverão receber indenização pela Fazenda Cruzeiro, desapropriada para reforma agrária em 1996. O pagamento vinha sendo questionado pela União e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) depois que a área foi declarada de posse permanente do grupo indígena Kaingang.
A área em litígio pertencia às madeireiras Pinhalão e Vimade-Vitória. A indenização, a ser paga em precatórios, foi estipulada em cerca de R$ 800 mil em ação transitada em julgado em 2011.
Em 2004, após a demarcação, a União e o Incra tentaram reverter a sentença e suspender o pagamento sob o argumento de que as terras sempre teriam sido patrimônio indígena. Entretanto o TRF4 e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) mantiveram a sentença.
A União e o Incra ajuizaram nova ação na Justiça Federal de Curitiba com pedido de tutela antecipada para bloquear o levantamento das TDAs (Títulos da Dívida Agrária) pelas empresas. O processo foi extinto sob o argumento de que a ação estaria sendo usada como revisão de algo já expressamente deliberado pelas cortes recursais.
Os autores recorreram ao tribunal. Segundo o relator, desembargador federal Luís Alberto d’Azevedo Aurvalle, a ação é incabível. ‘Ao que tudo indica, a União se vale desta ação para tentar reverter julgamento que lhe foi desfavorável, com trânsito em julgado em novembro de 2011, em virtude do não ajuizamento de ação rescisória dentro do prazo legal’, concluiu o desembargador.
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA
APELADO
:
MADEIREIRA PINHALÃO SA INDÚSTRIA E COMÉRCIO
:
VIMADE-VITORIA INDUSTRIA E COMERCIO DE MADEIRAS LTDA
MPF
:
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RELATÓRIO
Trata-se de ação ajuizada pela UNIÃO e pelo INCRA contra a MADEIREIRA PINHALÃO S/A INDÚSTRIA E COMÉRCIO e também a empresa VIMADE -VITÓRIA INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE MADEIRAS LTDA., objetivando a declaração de nulidade ou ineficácia da sentença prolatada nos autos da ação expropriatória nº 00.00.86183-9, bem como a declaração de que o depósito inicial de TDA’s, empreendido naqueles autos, pertence à União.
Alegam, em síntese, que após julgada procedente a ação de desapropriação do imóvel Fazenda Cruzeiro, com condenação da autarquia ao pagamento da indenização de R$ 797.549,56, na data da perícia (21 de novembro de 1996) a ser pago às empresas requeridas (proporção de 84,908% à Madeireira Pinhalão e o remanescente à Vimade Indústria), parte da área foi declarada de posse permanente do grupo indígena Kaingang, mediante o Decreto 3.894 de 23 de dezembro de 2004, publicado no DOU de 24 de dezembro de 2004. Defendem que os títulos incidentes sobre terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são viciados, dado que o indigenato implica a aquisição primária do domínio da referida área. Assim, postulam o levantamento dos TDAs, com o bloqueio do precatório relativo aos honorários.
O magistrado de primeiro grau julgou extinto o processo, sem julgamento de mérito, com fundamento no artigo 267, VI, do CPC. Argumentou que não se pode autorizar que a parte ingresse com pedido de querela nullitatis insanabilis, rediscutindo temas já deliberados expressamente pelo Tribunal, uma vez que a demanda expropriatória transitou em julgado.
Apela a União. Sustenta, em síntese, que não há nenhum resquício de pleito rescisório no pedido. Argumenta que a lide, na desapropriação, é limitada à discussão do preço da indenização e dos vícios do próprio processo judicial. Requer seja determinado o processamento regular da ação declaratória, impedindo-se, desde logo, o levantamento de indenização, nos autos conexos, relativo à parcela expropriada, em que há dúvida dominial.
Também recorre o INCRA. Defende que a sentença proferida na desapropriação não tem o efeito de fixar a titularidade dominial do bem desapropriado, restando assegurada a possibilidade de ajuizamento de ação própria para discussão do respectivo domínio.
Sem contrarrazões, vieram os autos a esta Corte, forte no artigo 296 do CPC/73.
Parecer do Ministério Público Federal pelo provimento dos apelos (evento 4).
É o relatório.
VOTO
No caso em exame, a União e o INCRA buscam a declaração de que o domínio de parte das terras desapropriadas nos autos da ação expropriatória nº 00.00.86183-9, que já transitou em julgado, pertencem a União (querela nullitatis).
Alegam que, após a prolação da sentença, uma área de 373,7848 hectares, inserida no perímetro desapropriado, foi declarada de posse permanente do grupo indígena Kaingang (Terra Indígena Palmas), pelo Decreto nº 3.894/2004. Defendem que o reconhecimento dos direitos indígenas sobre a área não pode gerar indenização às expropriadas quanto à parte declarada como área indígena, e que são nulos os atos que tenham por objeto domínio e posse dessas terras.
Assim, insurgem-se contra a sentença que está fundamentada na premissa de existência de coisa julgada em relação à demanda expropriatória ajuizada pelo INCRA no ano de 1986 (autos nº 00.00.86183-9). Defendem o cabimento da ação, ao argumento de que na ação de desapropriação não se discute o domínio, mas apenas o valor a ser pago a título de ressarcimento no caso de expropriação, nos termos do que determina o artigo 20 do Decreto-lei nº 3.365/41 (Lei da Desapropriação).
Vejamos.
Sem razão os apelantes. Após uma análise detalhada dos autos, penso que os apelantes na verdade buscam a rescisão da ação expropriatória que transitou em julgado 14/11/2011.
Com efeito, ao contrário do que defende a União, o TRF chegou a examinar a questão do domínio das terras, que teve impugnação após a prolação da sentença na ação expropriatória. Colaciono o acórdão proferido pela Relatora da apelação, verbis:
DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. APELAÇÃO UNIÃO. INTEMPESTIVIDADE. INDENIZAÇÃO. COBERTURA VEGETAL. DIVISÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO. FATOS SUPERVENIENTES. TERRA TRADICIONALMENTE OCUPADA POR INDÍGENAS. NÃO-INDENIZAÇÃO. ARTIGO 231, § 6º, da CF. JUROS COMPENSATÓRIOS E MORATÓRIOS. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA.
– Irretocável a decisão que não recebeu a apelação interposta pela União por ser intempestiva.
– Não sendo quantificável a indenização da cobertura vegetal a partir dos elementos trazidos aos autos, estando a depender da apuração de responsabilidades que refoge ao objeto desta ação, deve a pretensão ser deduzida em ação própria pelo interessado.
– A expropriada Vimade – Vitória Indústria e Comércio de Madeiras Ltda. faz jus ao valor da indenização na mesma proporção de seu domínio sobre a área desapropriada.
– Sobre a parcela da área desapropriada que foi declarada de domínio da comunidade indígena não tem direito as expropriadas a qualquer indenização, impondo-se a redução proporcional do montante fixado na sentença.
– Na esteira da ADIn 2.332/DF, a base de cálculo dos juros compensatórios será a diferença eventualmente apurada entre 80% do preço ofertado em juízo e o valor do bem fixado na sentença.
– A aplicação do art. 15-B do Decreto-lei nº 3.365/41 não afronta o princípio da irretroatividade da lei, sendo aplicável às desapropriações em curso quando da edição da MP n.º 1577/97. Precedentes do STJ.
– Honorários majorados para 5% sobre a diferença dos valores originalmente ofertados e os acolhidos nesta decisão. Grifo nosso
Destaco que foi apresentado voto divergente na Turma, no seguinte sentido:
Terras originalmente ocupadas pelos índios Kaingang
Depois de proferida sentença, a autarquia expropriante impugna o domínio, referindo se tratar de terras originalmente ocupadas pelos índios Kaingang, é certo que inexiste qualquer notícia nos autos de que este tenha sido objeto de ação própria, sendo cediço na doutrina bem como na jurisprudência o entendimento de que descabe discussão do domínio no âmbito da ação de desapropriação.
Com efeito, se houve declaração de posse permanente de grupo indígena, não é neste processo que a questão será resolvida, até porque não foi observado o devido processo legal em que a parte contrária tivesse oportunidade de defesa e é possível, como já se viu em outras ações, a impugnação do procedimento de identificação de terras desta natureza e efetivo afastamento mediante perícia judicial. Por isso, entendo que a declaração não constitui fato superveniente e modificativo do direito à indenização.
O voto divergente prevaleceu na Seção (TRF4, EINF 2000.04.01.021278-4, SEGUNDA SEÇÃO, Relator EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR, D.E. 02/05/2008).
Outrossim, registro que a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos EREsp 954.020/PR fixou entendimento que admite a discussão de domínio em ação de desapropriação, verbis:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. DESAPROPRIAÇÃO.
DOMÍNIO. DISCUSSÃO. CABIMENTO EXCEPCIONAL. FAIXA DE FRONTEIRA A OESTE DO PARANÁ.
1. A questão relativa ao domínio dos imóveis situados na faixa de fronteira a oeste do Paraná constitui condição da ação, podendo ser analisada nos próprios autos da desapropriação, desde que a controvérsia acerca do tema se estabeleça entre expropriante e expropriado, evitando-se que sejam pagas indenizações por terrenos que já pertençam à União.
2. Precedentes da Primeira Seção.
3. Embargos de divergência acolhidos.
(EREsp 954.020/PR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/04/2010, DJe 12/05/2010) Grifo nosso
Com efeito, após uma análise detalhada dos autos, entendo que não há motivos para alterar a decisão proferida em primeiro grau, que deve ser mantida na íntegra, por seus próprios fundamentos, que agrego às minhas razões de decidir:
( )
1. Breve síntese dos autos n. 00.00.86183-9:
Segundo evento1, acor9, p.1 e evento1, acor15, p.6, o INCRA deflagrara a desapropriação por interesse social nos idos de agosto de 1986, endereçando sua pretensão à Madeireira Pinhalão S/A Indústria e Comércio.
Consta que a aludida empresa teria adquirido a área em questão na data de 26 de janeiro de 1979, junto ao sr. Luiz Henrique Parigot de Souza e sua esposa Edenir Peters Parigot de Souza (evento1, acor15, p. 30 – matrícula 321, Registro Geral da Comarca de Palmas/PR).
A imissão na posse foi autorizada em 02 de setembro de 1986, pelo saudoso juiz Lício Bley Vieira (evento1, acor15, p. 41). A Madeireira ingressou, então, com medida cautelar e com demanda ordinária declaratória, objetivando o reconhecimento da nulidade do decreto expropriatório, o que não foi acolhido pelo eg. TRF4 (evento1, acor16, p. 27).
Elaborou-se laudo de avaliação (datado de 21 de novembro de 1996), conforme se vê do evento1, acor18, p. 181 e ss., com fotos do imóvel no evento1, acor19, p. 31-33.
A causa foi sentenciada em primeira instância na data de 30 de julho de 1997 (evento1, acor20, p. 16), acolhendo o pedido de expropriação, condicionado ao pagamento dos valores em favor da Madeireira Pinhalão e Vimade Indústria e Comércio, conforme proporção então definida.
A empresa Vimade ingressou com embargos declaratórios, não acolhidos (evento1, acor20, p. 32). Por seu turno, o INCRA ingressou com pedido em data de 18 de fevereiro de 1999, sustentando que a indenização seria indevida, eis que cuidar-se-ia de terras indígenas (eveto1, acor20, p. 76-78).
O INCRA e o MPF concordaram com o levantamento, por parte das empresas requeridas, de parcela dos valores depositados, no que tocaria à área de 343,01hc (evento1, acor21), o que foi deferido pelo juízo em 29 de outubro de 2002.
A União ingressou com apelação (evento1, acor21, p. 123 e ss.), sustentando cuidar-se de terra dos Kaingangs, de modo que a indenização seria indevida. Ela postulou que a sentença fosse anulada.
Em juízo de prelibação em primeira instância, aquela apelação não foi admitida, declarando-se a sua intempestividade (evento1, acor22, p.8). A decisão foi mantida pelo eg. TRF4 (evento1, acor2, p.1). Todavia, o acórdão alterou a sentença quanto ao valor dos honorários sucumbenciais (evento1, acor2, p. 9), bem como também determinou, por maioria de votos, que a parcela de área desapropriada, de alegado domínio indígena, fosse excluída para fins de indenização (evento1, acor2, p. 5-6).
Seguiram-se embargos infringentes interpostos pela Vimade (evento1, acor4, p.1), ocasião em que prevaleceu o voto vencido, mantendo-se a indenização quanto à integralidade da área (evento1, acor4, p.4). Quanto ao particular, o acórdão foi mantido pelo eg. TRF4 ao apreciar embargos declaratórios interpostos pelo Incra (evento1, acor3, p.3-4).
Os recursos extraordinários interpostos pelo INCRA e pelo MPF não foram admitidos (evento1, acor3, p.1). O recurso especial n. 1.121.645-PR, interposto pelo Incra, não foi conhecido pelo STJ (evento1, acor7, p.1).
Deflagrada a execução, o Incra interpôs embargos, sustentando que o título seria inexigível (evento1, acor8, p. 2), repisando o argumento de que cuidar-se-ia de terra indígena. O argumento não foi acolhido pelo Poder Judiciário, conforme sentença de autos n. 5012400-41.2012.404.7000/PR (cópia no evento1, sent13, p.1 e ss. e também no evento1, acor25, p. 104 e ss.).
O INCRA apelou daquela deliberação (evento29 dos autos n. 5012400-41.2012.404.7000), ao que seguiu-se recurso adesivo do embargado (evento 36 daqueles autos). Ao que consta, os apelos encontram-se sobre apreciação do eg. TRF4.
2. Respeito à coisa julgada:
Desse modo, percebe-se que o Incra ingressou com uma demanda expropriatória nos idos de agosto de 1986, endereçando sua pretensão à Madeireira Pinhalão. Depois de a causa ter sido sentenciada, ele sustentou que a área seria terra indígena.
O argumento já foi apreciado pelo eg. TRF4, em sede de embargos infringentes. O acórdão transitou em julgado. A objeção foi renovada em sede de embargos à execução, também já apreciada pelo juízo de primeira instância.
Transcrevo o que segue:
‘(…)
A) Terras originalmente ocupadas pelos índios Kaingang:
Relativamente à existência de terras originalmente ocupadas pelos índios Kaingang, noticiado nos autos após a prolação da sentença, compartilho do entendimento manifestado no voto-vencido, no sentido de tal situação não é suficiente para afastar a incidência de indenização no caso dos autos. Nesse sentido, peço vênia e transcrevo o seguinte excerto, cujos termos adoto como razão de decidir:
Depois de proferida sentença, a autarquia expropriante impugna o domínio, referindo se tratar de terras originalmente ocupadas pelos índios Kaingang, é certo que inexiste qualquer notícia nos autos de que este tenha sido objeto de ação própria, sendo cediço na doutrina bem como na jurisprudência o entendimento de que descabe discussão do domínio no âmbito da ação de desapropriação.
Com efeito, se houve declaração de posse permanente de grupo indígena, não é neste processo que a questão será resolvida, até porque não foi observado o devido processo legal em que a parte contrária tivesse oportunidade de defesa e é possível, como já se viu em outras ações, a impugnação do procedimento de identificação de terras desta natureza e efetivo afastamento mediante perícia judicial. Por isso, entendo que a declaração não constitui fato superveniente e modificativo do direito à indenização.’
(excerto do acórdão prolatado em sede de embargos infringentes)
Ora, percebe-se facilmente que as requerentes postularam que o presente juízo atue como uma espécie de órgão de rescisão de acórdãos prolatados pela Corte Recursal, o que é manifestamente incabível.
Deve-se atentar, de partida, que a coisa julgada é uma garantia constitucional, nos termos do art. 5º, XXXVI, CF: ‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.’
‘A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo STF, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade. A superveniência de decisão do STF, declaratória de inconstitucionalidade de diploma normativo utilizado como fundamento do título judicial questionado, ainda que impregnada de eficácia ex tunc – como sucede, ordinariamente, com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ 164/506-509 – RTJ 201/765) -, não se revela apta, só por si, a desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz, em nosso sistema jurídico, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, in abstracto, da Suprema Corte.’
(RE 592.912-AgR, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 3-4-2012, Segunda Turma, DJE de 22-11-2012.)
Nesse mesmo sentido, leiam-se também os seguintes julgados: RE 444.816, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 29-5-2012, Primeira Turma, DJE de 27-8-2012; RE 594.350, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 25-5-2010, DJE de 11-6-2010.
Nos termos do art. 467, CPC, ‘Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.’ Já o art. 468 dispõe que a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.
Merece ênfase, ademais, o art. 474, CPC, quando preconiza que ‘Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.’
Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero são precisos quando enfatizam que ‘A coisa julgada pressuposto do discurso jurídico – constitui uma regra sobre o discurso. Não admite, nesse sentido, ponderação. Representa evidente agressão ao Estado Constitucional e ao próprio discurso jurídico a tentativa de relativizar a coisa julgada.’ (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo cvil. 6. ed. rev. atual. São Paulo: RT, 2014, p. 449).
3. Impossibilidade jurídica do pedido:
Reporto-me à lição de Marcelo Abelha Rodrigues a respeito da possibilidade jurídica do pedido:
‘Presente no nosso ordenamento jurídico explicitamente no art. 295, III, e implicitamente quando este adotou o conceito abstrato de ação, a possibilidade jurídica do pedido diz respeito à previsão in abstracto daquilo que se pede, dentro do ordenamento jurídico.
A possibilidade jurídica do pedido é instituto processual, e significa que ninguém pode ajuizar uma ação sem que peça uma providência que esteja, em tese (abstratamente) prevista no ordenamento jurídico material (no direito alemão é usado o termo viabilidade, donde se abstrai o mesmo significado). Veja o exemplo: ‘A’ pede o despejo de ‘B’ por falta de pagamento.
Basta ao juiz a análise superficial e ver se tal situação é prevista (despejo por falta de pagamento) no nosso ordenamento jurídico, sem adentrar contudo em considerações fático-jurídicas do problema. Veja que ele não vai dizer, naquele momento, se ‘B’ vai ser despejado, mas apenas se existe no nosso ordenamento jurídico a hipótese invocada.
Por isso mesmo é que esta condição é prejudicial das demais, ou seja, deve ser a primeira a ser analisada, à luz da logicidade e do princípio da economia processual.
Dizer que um pedido é juridicamente possível significa que o ordenamento não o proíbe expressamente. Destarte, o vocábulo ‘pedido’, que faz parte da referida condição da ação, está disposto na sua acepção mais ampla, ou seja, não somente em seu sentido estrito de mérito, mas também conjugado com a causa de pedir.
Afinal, é lapidar a conceituação de Arruda Alvim: ‘Verificação se o pedido é, abstrata ou idealmente, contemplado pelo ordenamento, senão vedado pelo mesmo.’ Também é essencial a colocação feita por Nery, quando lembra que o termo ‘pedido’ (que integra a expressão ‘possibilidade jurídica do…’), tem de ser entendido na sua acepção mais lata, ou seja, conjugado com a causa de pedir. Assim, embora o pedido de cobrança, estritamente considerado, seja admissível pela lei brasileira, não o será se tiver como causa petendi dívida de jogo (art. 1.477, caput, Código Civil).’
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil. vol. 1. 2. ed. São Paulo: RT, 2000, p. 183-184.
Na espécie, diante do fartamente exposto, percebe-se facilmente que a pretensão deduzida nestes autos esbarra justamente na aludida condição da ação. Com efeito, não há como o presente juízo reformular a valoração expressamente lançada no feito pelo eg. TRF4, e mantida pelo STJ.
Fazê-lo implicaria um indevida inversão do procedimento judicial, abstraindo qualquer exame, aqui, quanto ao mérito do pleito. O fato é que a questão já foi decidida, e os prazos para rescisória já se esgotaram (art. 495, CPC); não sendo, ademais, esse o foro competente para tal debate, conforme se infere do art. 108, I, ‘b’, CF.
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA. QUERELA NULLITATIS. DIREITO DE INDENIZAÇÃO RECONHECIDO EM DESAPROPRIAÇÃO DIRETA. TRÂNSITO EM JULGADO. RESCISÃO POR VIA TRANSVERSA. IMPOSSIBILIDADE. 1. ‘Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido’. (Código de Processo Civil, art. 474). 2. No caso, há coisa julgada e a segurança jurídica não pode ser afrontada porque a parte supostamente descobriu, anos depois, que ocorrera erro quanto a área desapropriada. A via escolhida é equivocada. Agiu bem a sentenciante ao indeferir a petição inicial, julgando extinto o processo pela impossibilidade jurídica do pedido. 3. Apelação desprovida.
Há, sei bem, entendimento jurisprudencial de que a eficácia da coisa julgada não atingiria, nas demandas expropriatórias, a questão da titularidade (p.ex., TRF4, embargos infringentes de autos n. 2003.72.02.004344-9/SC, 2ª Seção, Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, D.E. de 10/06/09 e também STJ, REsp 903.339/PR, 1ª Turma, rel. Min. José Delgado, DJ de 30/08/07, p. 230).
Na espécie, todavia, cumpre não perder de vista que o argumento foi expressamente enfrentado pelo eg. TRF4 sem sede de embargos infringentes, rechaçando-se a pretensão do Incra. A mesma questão foi renovada pela parte interessada em sede de embargos à execução, sob apreciação do eg. TRF4.
Em que pese a relevância dos argumentos, simplesmente não se pode autorizar que a parte ingresse com pedido de querela nulitatis insanabilis, rediscutindo temas já deliberados expressamente pelos Tribunais. Isso soa agressivo aos ditames do art. 5º, XXXVI, da Lei Fundamental.
4. ‘ Decisão transitada em julgado, com execução já exaurida, mesmo que baseada em premissa posteriormente tida como inconstitucional não é passível de revisão, até porque, por opção legislativa, os provimentos dos feitos afetos ao JEF não são passíveis de ação rescisória, privilegiando-se a segurança em detrimento da certeza’. 5. ‘Finalmente, lembro que a querela nulitatis objetiva a declaração de nulidade de processo por vício existencial, como ausência de citação, sendo esta via imprópria para rediscussão do mérito da causa, ainda que fundada em inconstitucionalidade da coisa julgada’. Apelação improvida.
(AC 200985000050795, Desembargador Federal José Maria Lucena, TRF5 – Primeira Turma, DJE – Data::10/05/2013 – Página::321, omiti parte do julgado)
PROCESSUAL CIVIL. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA FEDERAL. ALEGAÇÃO DE OCORRÊNCIA DE ‘QUERELA NULITATIS’. NÃO CABIMENTO. HIPÓTESE DE AÇÃO RESCISÓRIA. I – O instituto da coisa julgada visa à preservação da segurança jurídica, impedindo a rediscussão de questão já decidida por órgão jurisdicional. II – As hipóteses de desconstituição da coisa julgada são as previstas nos artigos 475-L, I e 741, I, ambos do CPC (querela nullitatis) ou a ação rescisória. III – A incompetência absoluta é matéria alegável pela via da ação rescisória, nos termos do art. 485, II, do CPC IV – O E. Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que subsiste em nosso sistema, como único resquício da ‘querela nullitatis insanabilis’, a ação declaratória de nulidade restrita aos vícios da citação inicial. Precedentes. V – Apelação a que se nega provimento.
(AC 00113731220094036105, DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI, TRF3 – PRIMEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:28/02/2011 PÁGINA: 229 ..FONTE_REPUBLICACAO:.)
Ademais, repiso que o tema encontra-se sob julgamento do eg. TRF4. Caso a parte logre êxito em convencer a Corte Recursal dos seus argumentos, a consequência será a inibição do pagamento da indenização pretendida (apelação de autos n. 5012400-41.2012.404.7000), o que igualmente desaconselha que a presente causa tenha trâmite.
Repiso que a parte busca, com a presente demanda, exatamente aquilo que submeteu ao venerando TRF4, por época da sua apelação e resposta aos embargos infringentes. Não se pode converter esta causa em uma espécie de revisão daquilo que foi deliberado expressamente pela Corte Regional.
( )
O sistema jurídico brasileiro estabelece através do artigo 5º XXXVI da Constituição Federal a garantia da coisa julgada. Torna definitiva e imutável a sentença proferida de que não caiba mais recurso ordinário ou extraordinário (artigo 502 do CPC/15). Fundamental é esta disposição, para a manutenção da segurança jurídica. Porém, isto não garante, em absoluto, que a coisa julgada não esteja sujeita a desconstituição. O mesmo sistema que garante esta imutabilidade prevê hipóteses excepcionais para sua desconstituição, que são exemplos a ação rescisória e ação declaratória de inexistência de sentença (querela nullitatis insanabilis), que tem o objetivo de sanar vícios capazes de contaminar todo o processo, tornando a sentença inexistente em razão de um defeito pré-concebido, como, por exemplo, o ato de citar o réu de maneira inadequada.
Feita esta consideração, ao que tudo indica, a União se vale desta ação, que foi ajuizada em 23/07/2014 (evento 1) para tentar reverter julgamento que lhe foi desfavorável, com trânsito em julgado 14/11/2011, em virtude do não ajuizamento de ação rescisória dentro do prazo legal, o que entendo incabível no caso concreto.
Por fim, destaco que deflagada a execução da ação expropriatória já referida, o INCRA opôs embargos sustentado a inexigibilidade do título, ao argumento que parte da área seria indígena. A sentença que foi de improcedência, foi confirmada por esta Quarta Turma, cujo acórdão ora colaciono:
ADMINISTRATIVO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. INDENIZAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. A sentença observou os exatos limites do título executivo judicial, e deve ser mantida por seus próprios fundamentos. 2. Quando vencida a Fazenda Pública, os honorários advocatícios não ficam limitados ao percentual de 10% e 20%, podendo ser adotado um valor fixo, segundo a equidade, nos termos do que determina o artigo 20, § 4º, do CPC. 3. Apelações improvidas. (TRF4, APELREEX 5012400-41.2012.404.7000, QUARTA TURMA, Relator p/ Acórdão LUÍS ALBERTO D’AZEVEDO AURVALLE, juntado aos autos em 09/07/2015) Grifo nosso
Ante o exposto, voto por negar provimento à remessa oficial e às apelações.
Desembargador Federal Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA
APELADO
:
MADEIREIRA PINHALÃO SA INDÚSTRIA E COMÉRCIO
:
VIMADE-VITORIA INDUSTRIA E COMERCIO DE MADEIRAS LTDA
MPF
:
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
EMENTA
ADMINISTRATIVO. QUERELA NULLITATIS. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. FATO SUPERVENIENTE. TERRA TRADICIONALMENTE OCUPADA POR INDÍGENAS. NÃO-INDENIZAÇÃO.
1. A pretensão deduzida esbarra nas condições da ação. A questão já foi decidida, e os prazos para rescisória já se esgotaram.
3. Manutenção da sentença.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à remessa oficial e às apelações, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 06 de julho de 2016.
Desembargador Federal Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle