“O desembargador federal Hélio Nogueira, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), acolheu recurso de agravo de instrumento contra decisão que concedeu reintegração liminar de posse em terras disputadas entre índios e particulares no Mato Grosso do Sul.
A terra em disputa, denominada Fazenda Guapey, localizada no município de Coronel Sapucaia (MS), com registro no Cartório de Imóveis em Amabai (MS), foi recentemente ocupada por indígenas, que a reivindicam como sua.
Os requerentes da reintegração alegam que vem exercendo a posse das terras de forma mansa e pacífica desde a década de 1960, sendo o imóvel atualmente utilizado na exploração de atividade agrícola. Relatam que, em novembro de 2014, um grupo de índios denominado ‘Kurusu Ambá II’ invadiu a propriedade de forma violenta, retirando-lhe a posse.
O juízo de primeiro grau, ao conceder a medida liminar para reintegração o fez tendo como argumento central o fato de que a posse dos indígenas é ‘injusta e violenta’ e que, ‘embora seja legítimo o anseio dos indígenas em obter uma área de terras para que possam conduzir suas vidas de forma digna, tenho que não é a invasão o meio lícito de reaver terras e/ou de se promover a demarcação de terras indígenas. Até porque o meio utilizado para a obtenção do resultado pretendido não pode se contrapor ao [direito] legítimo dos autores de usarem seu imóvel, cuja posse é exercida por particulares há décadas.’
A decisão liminar determinou ainda que o cumprimento do mandado de reintegração deveria ser feito com acompanhamento da FUNAI e do Ministério Público Federal (MPF), requisitando-se força policial, bem como determinou a aplicação de multa ao líder indígena Ismarth Martins e à FUNAI por dia de retardamento da desocupação, bem como pelos atos da comunidade que causem danos e prejuízos à propriedade dos autores, além de perdas e danos.
Em segundo grau, o relator já havia deferido efeito suspensivo ao recurso de agravo de instrumento apresentado pelo MPF para recolher o mandado de reintegração de posse, tendo como consequência a permanência dos índios na área invadida. O órgão ministerial menciona também ter assinado um Termo de Ajustamento de Conduta para obrigar a União Federal a cumprir e dar andamento aos processos de demarcação das terras indígenas, inclusive quanto à de “Kurussu Ambá”, no Município de Coronel Sapucaia, situada na bacia Iguatemipeguá.
Ao analisar o caso em decisão monocrátrica, o desembargador federal destacou que os estudos técnicos preliminares elaborados pela FUNAI com o objetivo de identificação e delimitação das áreas de ocupação tradicional indígena no Estado de Mato Grosso do Sul sinalizam no sentido da legitimidade da reivindicação fundiária dos índios da etnia Guarani-Kaiowá, atualmente agrupados nas comunidades Kurusu Ambá I e II, na região do Município de Coronel Sapucaia/MS, onde está localizada a ‘Fazenda Guapey’.
De acordo com a decisão, documentos técnicos informam que, em meados da década de 1960, houve uma forte expansão agropecuária na região e os índios teriam sido expulsos das suas aldeias, sendo obrigados a migrar para reservas indígenas criadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), tendo alguns retornado posteriormente para trabalhar nas próprias fazendas abertas na região. ‘Esses elementos’, diz o magistrado, ‘são suficientes a evidenciar a necessidade de cautela no que tange à reintegração de posse de terras que podem ser de posse originalmente indígena.’
O relator cita ainda precedentes para acolher o argumento do MPF no sentido de que, havendo dúvida acerca da natureza jurídica da área em questão (se terra indígena ou não), não deve ser concedida liminar de reintegração de posse antes de serem ouvidas a União, a Funai e o próprio MPF.
A dúvida, para o magistrado, somente poderá ser resolvida no curso do processo administrativo demarcatório, que tem caráter declaratório – e não constitutivo – ou por meio de perícias judiciais histórico-antropológicas a serem realizadas no curso da instrução processual. Ele também entendeu que permitir a retirada forçada da ‘Fazenda Guapey’, liminarmente, com força policial, poderá, de fato, acarretar séria convulsão social.
A decisão ressalva ainda: ‘Note-se que não se pretende, com a presente decisão, legitimar invasões pelas comunidades indígenas ou mesmo substituir a UNIÃO e a FUNAI no processo administrativo de regularização fundiária, com a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Apenas verifica-se a necessidade de que seja realizada uma análise mais aprofundada da questão pelo juiz da causa, com prévia oitiva dos interessados – UNIÃO, FUNAI E MPF – bem como a realização da instrução processual necessária à emissão de um juízo de certeza sobre a legitimidade da posse das terras da ‘Fazenda Guapey’.”
Fonte: Assessoria de Comunicação Social do TRF3, 26/01/2016.
Conheça a íntegra da decisão:
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0032274-07.2014.4.03.0000/MS
RELATOR |
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Desembargador Federal HÉLIO NOGUEIRA |
AGRAVANTE |
: |
Ministerio Publico Federal |
PROCURADOR |
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RICARDO PAEL ARDENGHI |
AGRAVADO(A) |
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ILMO BAUERMANN e outros(as) |
ADVOGADO |
: |
MS002326 FERNANDO JORGE ALBUQUERQUE PISSINI |
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: |
MS007993 RODRIGO OTANO SIMOES |
AGRAVADO(A) |
: |
CASSIA DE LOURDES LORENZETT |
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: |
RHAINE VANZELA RAMOS |
ADVOGADO |
: |
MS002326 FERNANDO JORGE ALBUQUERQUE PISSINI |
PARTE RÉ |
: |
Uniao Federal |
ADVOGADO |
: |
SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO e outro(a) |
PARTE RÉ |
: |
Fundacao Nacional do Indio FUNAI |
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: |
ISMARTH MARTINS |
ORIGEM |
: |
JUIZO FEDERAL DA 1 VARA DE PONTA PORA – 5ª SSJ – MS |
No. ORIG. |
: |
00023922720144036005 1 Vr PONTA PORA/MS |
DECISÃO
Trata-se de Agravo de Instrumento, com pedido de antecipação de tutela recursal, interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, contra a decisão que deferiu liminar, nos autos da ação de reintegração de posse proposta por ILMO BAUERMANN, CASSIA DE LOURDES LORENZETT E RHAIANE VANZELA RAMOS, em face de ISMARTH MARTINS, UNIÃO FEDERAL E FUNAI, a qual tramita perante a 1ª Vara Federal de Ponta Porã/MS (autos n.º 0002392-27.2014.403.6005).
Na inicial da ação possessória, os dois primeiros autores alegam, em síntese, ser legítimos proprietários e possuidores (indiretos) da “Fazenda Guapey” (objeto da matrícula n.º 22.348 do Cartório de Registro de Imóveis de Amambai/MS), localizada no Município de Coronel Sapucaia/MS, cuja posse vem sendo exercida de forma mansa e pacífica desde a década de 1960, quando da alienação a Leorival Nunes Vargas e após consecutivas alienações até os autores. A coautora RHAIANE, por sua vez, sustenta que, na condição de arrendatária, exerce a posse direta do imóvel desde 01/09/2014, sendo o imóvel utilizado na exploração de atividade agrícola.
Alegam que, em 18/11/2014, às 9h, um grupo de índios, do acampamento denominado “Kurusu Ambá II”, invadiu a propriedade, de forma violenta, esbulhando a posse dos autores.
Referido grupo, segundo os autores, seria parcela dissidente da comunidade “Kurusu Amba”, a qual se encontra acampada na Fazenda Nossa Senhora Auxiliadora (processo de ocupação n.º 2010.60.05.000052-8). Do grupo originário, parte já havia ocupado a Fazenda Barra Bonita, vizinha ao imóvel objeto da presente ação, formando naquele local a comunidade “Kurusu Ambá II”. Contudo, tendo sido determinada a reintegração de posse do referido imóvel (processos n.ºs 0001028-54.2013.403.6005 e 0001837-10.2014.406.6005), os dissidentes, sob o comando do corréu ISMARTH MARTINS deliberaram a invasão da “Fazenda Guapey”.
A MM. Juíza a quo proferiu liminar determinando a expedição do mandado de reintegração de posse da área invadida “Fazenda Guapey”, por entender suficientemente comprovada a ocorrência do esbulho, bem como os requisitos do art. 927 do CPC. Consignou, outrossim, que a posse dos indígenas é injusta porque violenta e que, embora seja “legítimo o anseio dos indígenas em obter uma área de terras para que possam conduzir suas vidas de forma digna, tenho que não é a invasão o meio lícito de reaver terras e/ou de se promover a demarcação de terras indígenas. Até porque o meio utilizado para a obtenção do resultado pretendido não pode se contrapor ao legítimo dos autores de usarem seu imóvel, cuja posse é exercida por particulares há décadas” (fls. 33 deste instrumento).
Foi determinado, ainda, que o cumprimento do mandado de reintegração deve ser feito com acompanhamento da FUNAI e do MPF, requisitando-se força policial, bem como fixada a multa de R$500.000,00 (quinhentos mil reais) ao líder indígena ISMARTH MARTINS e à FUNAI por dia de retardamento da desocupação, bem como pelos atos da comunidade que causem danos e prejuízos à propriedade dos autores, além de perdas e danos.
Intimado da decisão, o Ministério Público Federal interpôs o presente agravo sustentando, preliminarmente, sua legitimidade recursal a nulidade da decisão por inobservância da exigência de prévia manifestação da UNIÃO e da FUNAI sobre a concessão da liminar de reintegração pretendida, nos termos do art. 63 da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio) e do art. 928, parágrafo único, do CPC, bem como de prévia manifestação do MPF, nos termos do art. 232 da Constituição Federal.
No mérito, o agravante alegou, em síntese, que “o efetivo exercício da posse (civil) pelos agravados na denominada “Fazenda Guapey”, por si só, não elide a possibilidade de o imóvel enquadrar-se também, simultaneamente, no conceito de terra tradicionalmente ocupada pelos índios, consagrado no art. 231, §1º, da Constituição da República” (fls. 22).
E, na hipótese, há documentos técnicos, especialmente: a) Informação Técnica n.º 02/2014/AT-CRPP-FUNAI-MJ; b) Nota Técnica n.º 020/2010, elaborada pela antropóloga coordenadora do Grupo Técnico da FUNAI (instituído pela Portaria n.º 790 de 10/07/2008), responsável pelos trabalhos de identificação e delimitação do “tekoha” (área) situado na bacia denominada Iguatemipeguá II (que inclui a terra Kurusu Ambá, no Município de Coronel Sapucaia/MS), os quais sinalizam ser legítima a ocupação tradicional indígena Kaiowa da área Kurusu Ambá.
Além disso, o próprio Relatório da Comissão Nacional da Verdade, de acordo com o agravante, também daria conta de que os índios ali presentes sofreram verdadeira espoliação dos fazendeiros que chegavam ao local, sendo expulsos das terras situadas no sul do então Estado do Mato Grosso, tendo havido inúmeras tentativas de retomada.
O MPF menciona, ainda, ter assinado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para obrigar a União Federal a cumprir e dar andamento aos processos de demarcação das terras indígenas, inclusive quanto à “Kurusu Ambá”, no Município de Coronel Sapucaia/MS, situada na bacia identificada como Iguatemipeguá.
Por conseguinte, afirma o agravante que, havendo fundado estado de dúvida acerca da natureza jurídica da área em questão (se terra indígena ou não), o que somente poderá ser dirimido no curso no processo administrativo demarcatório, que tem caráter declaratório – e não constitutivo – ou por meio de perícias judiciais histórico-antropológicas a serem realizadas no curso da instrução processual, não se justifica o deferimento da liminar de reintegração de posse, fundada em cognição sumária e sem prévia oitiva da UNIÃO, FUNAI e MPF, para determinar a retirada compulsória do grupo indígena da “Fazenda Guapey”.
Pleiteia a concessão de efeito suspensivo ao recurso, invocando o periculum in mora decorrente da iminência de cumprimento do mandado de reintegração de posse, que poderá causar graves e irreparáveis danos à comunidade indígena afetada.
Às fls. 315/318, foi deferido efeito suspensivo ao recurso, determinando-se o imediato recolhimento do mandado de reintegração de posse eventualmente expedido.
Contraminuta apresentada às fls. 341/356. Manifestação do Ministério Público Federal às fls. 359/366vo.
É o relatório.
Fundamento e decido.
Nos termos do caput e § 1º-A do artigo 557 do Código de Processo Civil e do enunciado da Súmula nº 253 do Superior Tribunal de Justiça, o relator está autorizado, por meio de decisão monocrática, a negar seguimento ou dar provimento ao recurso voluntário e à remessa oficial, nas hipóteses de pedido inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com a jurisprudência dominante da respectiva Corte Regional ou de Tribunal Superior.
O caso comporta decisão na forma do artigo 557 do CPC.
No que tange à legitimidade recursal do Ministério Público Federal, verifico estar presente na hipótese, haja vista que o parquet atua como fiscal da lei e no interesse das populações indígenas (arts. 127; 129, V; e 232 da CF/88; art. 5º, III, “e”; 6º, XI; 37, II, da LC n.º 75/93; e art. 499 do CPC), sendo que a decisão agravada, proferida sem sua prévia oitiva, é desfavorável à comunidade indígena.
Na hipótese, os estudos técnicos preliminares elaborados pela FUNAI com o escopo de identificação e delimitação das áreas de ocupação tradicional indígena no Estado do Mato Grosso do Sul sinalizam no sentido da legitimidade da reinvindicação fundiária dos índios da etnia Guarani-Kaiowá, atualmente agrupados nas comunidades Kurusu Ambá I e II, na região do Município de Coronel Sapucaia/MS, onde está localizada a “Fazenda Guapey” (fls. 191/241).
Conforme a informação técnica n.º 02/2014/AT-CRPP-FUNAI-MJ, em meados da década de 1960, houve uma forte expansão agropecuária na região e os índios teriam sido expulsos das suas aldeias, sendo obrigados a migrar para reservas indígenas criadas pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios), alguns retornando posteriormente para trabalhar nas próprias fazendas abertas na região.
É certo que não se trata de um estudo definitivo quanto à definição sobre o correto domínio das terras, haja vista que ainda não foi concluído o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação pelo Grupo Técnico responsável pelos estudos, instituído pela Portaria n.º 790 de 10/07/2008 da FUNAI. Todavia, esses elementos são suficientes a evidenciar a necessidade de cautela no que tange à reintegração de posse de terras que podem ser de posse originalmente indígena.
Nesse sentido, cumpre mencionar a recentíssima decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede da Suspensão de Liminar n.º 842/MS requerida pela FUNAI na Medida Cautelar Inominada 0001837-10.2014.403.6005, incidental à Ação de Reintegração de Posse 00001028-54.2013.403.6005, referente à Fazenda Barra Bonita, vizinha à “Fazenda Guapey”, na qual o Min. Ricardo Lewandowski determinou a suspensão da execução da liminar de reintegração de posse até o trânsito em julgado da decisão de mérito, destacando que:
“(…)
a demarcação de terras indígenas constitui ato meramente declaratório, que apenas reconhece um direito preexistente e assegurado documentalmente.
Tanto a portaria do Ministro da Justiça quanto o decreto presidencial, previstos no Decreto 1.775/96 (respectivamente nos arts. 2º, § 10, I, e 5º), não possuem caráter constitutivo, não criando, extinguindo ou modificando nova relação jurídica. A demarcação, que é declaratória, visa trazer o reconhecimento e a regularização das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Corroborando com esse entendimento, o art. 25 da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio), recepcionado pela atual Constituição, dispõe que:
“O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antiguidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República ” (grifos nossos).
(…)
O ato de demarcação, ato administrativo que é, goza da presunção de legitimidade e de veracidade, de modo que, hipoteticamente falando, mesmo eivado de vícios que comprometam a sua validade, ele produziria os efeitos como se válido fosse, até a decretação de sua invalidade pelo Judiciário ou pela própria administração.
Por isso, diante da presunção de veracidade dos estudos e resultados preliminares que confirmam que o imóvel intitulado “Fazenda Barra Bonita” incide integralmente sobre as terras de ocupação tradicional dos indígenas Guarani-Kaiowá, que compõem a Comunidade Indígena Kuruçu Ambá II, seria temerário permitir a retirada forçada dos indígenas, concedendo a reintegração da posse aos não índios, por meio de decisão liminar, haja vista o risco de conflitos que poderiam representar enorme convulsão social, passível de abalar a ordem e a segurança públicas”.
O Min. Ayres Brito, na Pet 3.388, cujo objeto era a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, também destaque o caráter declaratório da demarcação das terras indígenas:
11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa —- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) —- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da “Raposa Serra do Sol”.
(…)
12. DIREITOS ORIGINÁRIOS. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente reconhecidos , e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória , e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de originários, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios . Atos, estes, que a própria Constituição declarou como nulos e extintos (§ 6º do art. 231 da CF)” (grifos nossos)
Considerando o fundado estado de dúvida acerca na natureza jurídica da área objeto da presente ação possessória- “Fazenda Guapey”- mostra-se, por conseguinte, precipitada a concessão da liminar de reintegração, na hipótese, sem ao menos ser oportunizada a manifestação da UNIÃO, da FUNAI e do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, nos termos do art. 63 da Lei 6.001/73 e art. 232 da CF/88, bem como sem que fossem realizados quaisquer estudos periciais no sentido de verificar a legitimidade da posse dos autores.
Além disso, é importante pontuar que, diante do contexto fático de ocupação indígena na região, permitir a sua retirada forçada da “Fazenda Guapey”, liminarmente, com força policial, poderá, de fato acarretar séria convulsão social, como observado pelo próprio Min. Ricardo Lewandowski, ao conceder a suspensão da liminar reintegratória da Fazenda Barra Bonita, situada na mesma região.
A iminência de conflitos, decorrente do acirramento dos ânimos no local, pode gerar consequências trágicas, como as que ocorreram em 2013, no Município de Sidrolândia/MS, quando do cumprimento de ordem de reintegração de posse da Fazenda Buriti. Consequências essas que podem e devem ser evitadas, nesse momento, mediante a realização de uma cognição mais aprofundada da questão sub judice.
Note-se que não se pretende, com a presente decisão, legitimar invasões pelas comunidades indígenas ou mesmo substituir a UNIÃO e FUNAI no processo administrativo de regularização fundiária, com a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Apenas verifica-se a necessidade de que seja realizada uma análise mais aprofundada da questão pelo juiz da causa, com a prévia oitiva dos interessados – UNIÃO, FUNAI e MPF – bem como com a realização da instrução processual necessária à emissão de um juízo de certeza sobre legitimidade da posse das terras da “Fazenda Guapey”.
Diante do exposto, com fundamento no artigo 557, §1º-A, do Código de Processo Civil dou provimento ao agravo de instrumento, para reformar a decisão que concedera a reintegração liminar na posse do imóvel.
Intimem-se.
Comunique-se.
Decorrido o prazo recursal, baixem os autos ao Juízo de origem, observadas as formalidades legais.
São Paulo, 15 de dezembro de 2015.
HÉLIO NOGUEIRA
Desembargador Federal