Direito Agrário

STF decide que Decreto Municipal não pode afrontar Decreto Estadual

Direito Agrário - foto: Albenir Querubini

Em decisão publicada hoje no diário eletrônico, o Min. Dias Tofolli, do Supremo Tribunal Federal, negou seguimento à pretensão do Município de Santa Cruz do Sul de suspender liminar concedida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em mandado de segurança interposto por estabelecimento de comércio de produtos naturais de caráter alimentar.

Em que pese o município não tenha incluído o estabelecimento em questão dentre os provedores de serviços essenciais para funcionamento durante o período do estado de calamidade decretado em face da pandemia de COVID-19, o Decreto do Estado do Rio Grande do Sul previu a comercialização de alimentos dentre àquelas essenciais, inclusive, impedindo seu fechamento. A essencialidade dos alimentos comercializados, já havia sido objeto de análise pelo Tribunal Estadual:

“[o] estabelecimento da impetrante comercializa produtos dos mais básicos para a alimentação, como arroz, feijão, massa, pães, até produtos específicos para pessoas com diabetes, doença celíaca e intolerantes à lactose, podendo exercer suas atividades sem que seja exclusivamente por delivery, visto que este ato configura restrição ao exercício de suas atividades.”

Todavia, o tratamento dado pelo ente municipal, diferencia as lojas de produtos naturais, restringindo sua forma de funcionamento em que pese ser comércio alimentício. Para o caso apreciado pela Corte Suprema não é cabível tal restrição:

“Assim, muito embora não se discuta, no caso, o poder que detém o Chefe do Poder Executivo Municipal para editar decretos regulamentares, no âmbito territorial de sua competência, no caso concreto ora em análise, não poderia ele impor tal restrição à abertura de loja de produto natural, em clara afronta a igual disposição constante de Decreto Estadual.”

A jurisprudência desta Suprema Corte consolidou o entendimento de que, em matéria de competência concorrente, há que se respeitar o que se convencionou denominar de predominância de interesse, para a análise de eventual conflito porventura instaurado.

A decisão proferida em caráter liminar, refere-se ao Mandado de Segurança nº 5001462-66.2020.8.210026, ainda em curso.

Confira a íntegra da decisão proferida pelo STF:

SS/5370 – SUSPENSÃO DE SEGURANÇA

Classe: SS
Procedência: RIO GRANDE DO SUL
Relator: MINISTRO PRESIDENTE
Partes REQTE.(S) – MUNICIPIO DE SANTA CRUZ DO SUL
ADV.(A/S) – PROCURADOR-GERAL DO MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ DO SUL
REQDO.(A/S) – RELATOR DO AI Nº 5012026-37.2020.8.21.7000 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
ADV.(A/S) – SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
INTDO.(A/S) – JORGE P HELFER – ME
ADV.(A/S) – BETINA KIPPER
Matéria: QUESTÕES DE ALTA COMPLEXIDADE, GRANDE IMPACTO E REPERCUSSÃO | COVID-19
DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO | Garantias Constitucionais

Decisão:

 

Vistos.

Cuida-se de suspensão de segurança proposta pelo Município de Santa Cruz do Sul, com o objetivo de sustar os efeitos de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos autos do Agravo de Instrumento nº 5012026-37.2020.8.21.7000, que permitiu a abertura de loja de produtos naturais, sem restrição de funcionamento por delivery ou drive-thru.

O requerente narra que, na origem, foi ajuizada ação mandamental objetivando impugnar o Decreto Municipal nº 10.565/20, que não incluíra as “Lojas de Produtos Naturais” dentre as prestadoras de serviços essenciais para funcionamento durante a pandemia de Covid-19, apontando-se, para tanto, a violação das disposições do Decreto Estadual nº 55.154/20, que previu a produção, a distribuição e o transporte de alimentos dentre as atividades essenciais nesse mesmo período.

Informa que a liminar foi deferida em segunda instância para permitir que o estabelecimento se mantivesse aberto para atendimento presencial dos consumidores, mesmo após a edição de ato normativo municipal que regulamentou o funcionamento de lojas de produtos naturais por meio de delivery e drive-thru, o que deu ensejo ao ajuizamento do presente pedido de suspensão.

O Município de Santa Cruz do Sul sustenta que a decisão objurgada põe em risco a ordem administrativa e a saúde, pois “transforma a empresa Agravante numa verdadeira ilha imune à fiscalização municipal, bem como às medidas adotadas em âmbito local para fins de enfrentamento à Pandemia de Coronavírus” (eDoc 1,p. 19).

Defende i) que os entes municipais têm competência “para legislar sobre atividades comerciais, por se tratar de assunto de interesse local” (eDoc 1, p. 20), com fundamento no art. 30, I, da CF/88 e na Súmula Vinculante nº 38; e ii) que a decisão do TJRS “torna letra morta as normas que preveem a legitimidade concorrente dos Municípios com a União e os Estados para disciplinar questões atinentes à saúde pública (artigo 23, inciso II, da Carta Magna), no que se inclui impor restrições ao exercício do livre comércio local” ( eDoc 1, pp. 19 e 20).

É o relatório.

Decido.

Como se sabe, a suspensão dos efeitos de decisões concessivas de segurança, de liminar, de tutela antecipada e de tutela provisória pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal tem seu deferimento condicionado à rigorosa análise de seus pressupostos, quais sejam: a constatação da natureza constitucional da controvérsia originária, e a demonstração do potencial lesivo à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas, decorrente da manutenção da decisão atacada.

Nesse sentido, dispõe o art. 25 da Lei nº 8.038/90:

Art. 25 – Salvo quando a causa tiver por fundamento matéria constitucional, compete ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça, a requerimento do Procurador-Geral da República ou da pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar ou de decisão concessiva de mandado de segurança, proferida, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal.

Inicialmente, reconheço a competência desta Suprema Corte para a apreciação do pedido de suspensão, uma vez que a controvérsia em discussão na origem vincula-se diretamente ao Princípio da Separação dos Poderes (art. 2ª da Constituição Federal), e ao Pacto Federativo, porquanto aborda a competência para promover a adequada proteção à saúde e à assistência pública (art. 23 da Constituição Federal).

Nesse sentido, tem-se que a ação mandamental cuja decisão se busca ora sustar refere-se à definição de competência para atuação administrativa e regulamentação do poder de polícia sanitária na atual situação de pandemia reconhecida pela OMS – se do ente estadual ou do ente municipal –, questão com expresso fundamento na Constituição Federal, como mencionado.

Referida ação permitiu o funcionamento da loja de produtos naturais no Município de Santa Cruz do Sul, afastando o Decreto Municipal nº 10.565/20 com fundamento no Decreto Estadual nº 55.154/20. Conforme transcrito na peça vestibular da presente contracautela, o TJRS consignou que:

“[o] estabelecimento da impetrante comercializa produtos dos mais básicos para a alimentação, como arroz, feijão, massa, pães, até produtos específicos para pessoas com diabetes, doença celíaca e intolerantes à lactose, podendo exercer suas atividades sem que seja exclusivamente por delivery, visto que este ato configura restrição ao exercício de suas atividades.”

Como já assentado por esta Corte, no limitado âmbito das suspensões, a apreciação de mérito só se justifica, e sempre de modo perfunctório, quando se mostre indispensável à apreciação do alegado rompimento da ordem pública pela decisão combatida.

A questão posta nos autos diz respeito à imposição de ordem ao requerente, no sentido de permitir o funcionamento de loja de produtos naturais específica porque a regra municipal que lhe proibiu o funcionamento conflitaria com igual regramento, editado pelo Governo daquele estado.

Assim, há que se ter sob análise a competência do ente municipal para a imposição das restrições ora questionadas, em vista das normas constitucionais aplicáveis ao caso.

Quanto a esse aspecto, tem-se que a legislação federal editada para dispor sobre as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública que ora vivenciamos (Lei nº 13.979/20), nada dispôs especificamente sobre esse tema.

O Decreto Federal que a regulamentou (nº  10.282/20), ao referir-se a serviços públicos e atividades essenciais, cujo exercício e funcionamento  restou resguardado,  arrolou, no art. 3º, inc. XII, a produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas.

O Governo do estado do Rio Grande do Sul, unidade da Federação em que se situa o Município de Santa Cruz do Sul, por sua vez e no âmbito de sua competência regulamentar, editou o Decreto nº 55.154/20, que assim dispõe:

“Art. 17. As medidas estaduais e municipais para fins de prevenção e de enfrentamento à epidemia causada pelo COVID-19 (novo Coronavírus) deverão resguardar o exercício e o funcionamento das atividades públicas e privadas essenciais, ficando vedado o seu fechamento.

§ 1º São atividades públicas e privadas essenciais aquelas indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim consideradas aquelas que, se não atendidas, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população,tais como:

(…)

XII -produção, distribuição, transporte, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, de higiene, de alimentos e de bebidas;”

Fácil constatar, destarte, que referido normativo não destoa do Decreto Federal supra transcrito, ao contrário da pretensão do Município ora requerente, que pretende impor restrição à comercialização de alimentos naturais, mesmo sem consumo local.

Conforme tenho ressaltado, na análise de pedidos referentes aos efeitos da pandemia de COVI-19, entre nós e, especialmente, na tentativa de equacionar os inevitáveis conflitos federativos disso decorrentes, a gravidade da situação vivenciada exige a tomada de medidas coordenadas e voltadas ao bem comum, sempre respeitada a competência constitucional de cada ente da Federação para atuar, dentro de sua área territorial e com vistas a resguardar sua necessária autonomia para assim proceder.

Com o julgamento concluído no dia 17/4/20, do referendo da medida cautelar na ADI  nº 6.341, esse entendimento foi explicitado pelo Plenário desta Suprema Corte, ao deixar assentado que o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, mas restou reconhecida e preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição Federal.

Dentro dessa conformidade agiu o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, ao editar o aludido decreto.

Assim, muito embora não se discuta, no caso, o poder que detém o Chefe do Poder Executivo Municipal para editar decretos regulamentares, no âmbito territorial de sua competência, no caso concreto ora em análise, não poderia ele impor tal restrição à abertura de loja de produto natural, em clara afronta a igual disposição constante de Decreto Estadual.

A jurisprudência desta Suprema Corte consolidou o entendimento de que, em matéria de competência concorrente, há que se respeitar o que se convencionou denominar de predominância de interesse, para a análise de eventual conflito porventura instaurado.

Nesse sentido e apenas para ilustrar, cite-se trecho da ementa do seguinte e recente acórdão:

“(…) 5. Durante a evolução do federalismo, passou-se da ideia de três campos de poder mutuamente exclusivos e limitadores, segundo a qual a União, os Estados e os Municípios teriam suas áreas exclusivas de autoridade, para um novo modelo federal baseado, principalmente, na cooperação, como salientado por KARL LOEWESTEIN (Teoria de la constitución. Barcelona: Ariel, 1962. p. 362). 6. O legislador constituinte de 1988, atento a essa evolução, bem como sabedor da tradição centralizadora brasileira, tanto, obviamente, nas diversas ditaduras que sofremos, quanto nos momentos de normalidade democrática, instituiu novas regras descentralizadoras na distribuição formal de competências legislativas, com base no princípio da predominância do interesse, e ampliou as hipóteses de competências concorrentes, além de fortalecer o Município como polo gerador de normas de interesse local. 7. O princípio geral que norteia a repartição de competência entre os entes componentes do Estado Federal brasileiro é o princípio da predominância do interesse, tanto para as matérias cuja definição foi preestabelecida pelo texto constitucional, quanto em termos de interpretação em hipóteses que envolvem várias e diversas matérias, como na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade. 8. A própria Constituição Federal, portanto, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos, União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-membros e Municípios (CF, arts. 24 e 30, inciso I) (…)” (RE  nº 1.247.930-AgR/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 24/3/20).

Segundo essa compreensão, têm sido julgados os casos submetidos à competência desta Suprema Corte, forte no entendimento de que a competência dos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local não afasta a incidência das normas estaduais e federais expedidas com base na competência concorrente, conforme, por exemplo, decidido quando do julgamento do RE nº 981.825-AgR-segundo/SP, de cuja ementa destaco o seguinte excerto:

“(…) A competência constitucional dos Municípios para legislar sobre interesse local não os autoriza a estabelecer normas que veiculem matérias que a própria Constituição atribui à União ou aos Estados. Precedentes (…)” (1ª Turma, Relª Minª Rosa Weber, DJe de 21/11/19).

Inviável, destarte, o acolhimento da pretensão deduzida através da interposição desta contracautela.

Ante o exposto, nego seguimento à presente suspensão de segurança (art. 21, § 1º, do RISTF), prejudicada a análise do pedido de cautelar.

Publique-se.

Brasília, 22 de abril de 2020.

 

 

Ministro Dias Toffoli

Presidente

Documento assinado digitalmente

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