Direito Agrário

A nova proposta para o processo de demarcação de terras indígenas

Direito Agrário

Por Pedro Puttini Mendes.

Foi noticiada recentemente uma nova proposta de regulamentação para os processos de demarcação de terras indígenas, oriunda do Ministério da Justiça, responsável por grande parte do processo de homologação das demarcações indígenas instruídos pela Fundação Nacional do Índio, publicado pelo Estadão (http:// http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-justica-quer-alterar-regras-de-demarcacao-de-terras-indigenas,10000094018).

Referida “minuta” chamada de “Proposta de Regulamentação da Demarcação de Terras Indígenas”, contempla uma justificativa e seria um novo decreto federal em substituição ao Decreto nº 1.775/1996, regulatório do art. 231 da Constituição Federal.

O “projeto de novo decreto” se assim podemos chamar, vazou pela internet com justificativa que buscaria propor “solução pacífica das eventuais controvérsias entre direitos indígenas e outros sujeitos de direitos sociais […]”, tais como: trabalhadores rurais da pequena e da média propriedade, trabalhadores das partes ocupadas e produtivas de assentamentos de reforma agrária e habitantes de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas.

Também na sua justificativa vazada pela internet, o Ministro da Justiça sustenta necessidade de atualização do primeiro decreto e que após 1996, ano do decreto, houve a publicação de novas normativas, como a Lei Federal nº 9.784/1999 (regulamenta processos administrativos federais), Lei Federal nº 12.527/2011 (lei de acesso à informação), sem contar os diversos julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal deste então, principalmente estes que passam a ser obrigatoriamente observados pela Funai no momento de seus julgamentos, devendo justificar a razão da aplicabilidade ou não dos precedentes (art. 17 do novo decreto).

Note-se a intenção normativa em refletir maior estabilidade jurídica com obediência aos julgados proferidos pela Corte Suprema sem inovações a serem produzidas por órgãos infraconstitucionais de instruções processuais frágeis.

Já o novo artigo 31 do novo Decreto insere as condicionantes definidas pelo caso Raposo Serra do Sol (PET 3888, STF) como obrigatórias para próximos decretos de demarcação, também trazendo segurança jurídica às áreas demarcadas e seus entornos, haja vista que proíbe ampliações, arrendamentos das áreas ou cobrança pela passagem no interior das mesmas, responsabilizando ainda pelo usufruto de recursos naturais indevidos, como também caça e pesca por não-índios.

O novo texto prestigia o “marco temporal” para melhor estabilização social e jurídica, ratificando julgados do STF, tais como o Raposo Serra do Sul e o RMS nº 29087/DF (Min. Carmem Lucia), validando posse originária daqueles povos indígenas que ocupavam ou disputavam áreas até 05 de Outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, desprestigiando aqueles povos que não pleitearam ou disputaram seus direitos, evitando a “eternização” de ocupações/invasões, já que, atualmente alguns estados vivem em situação de permanente temor quanto à descoberta de novas “terras tradicionais”, criando um paradoxo histórico e antropológico.

Em outras palavras, obedecendo ao marco temporal, não se incluem no conceito de terras indígenas aquelas ocupadas por índios no passado e que venham a ser ocupadas no futuro, acrescida do critério de tradicionalidade da ocupação, “qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios”.

A Súmula nº 650/STF já disse que as demarcações não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto, entendimento oriundo do Recurso Extraordinário 219.983, onde o Min. Nelson Jobim destacou, em relação ao reconhecimento de terras indígenas, que:

“Há um dado fático necessário: estarem os índios na posse da área. É um dado efetivo em que se leva em conta o conceito objetivo de haver a posse. É preciso deixar claro, também, que a palavra ‘tradicionalmente’ não é posse imemorial, é a forma de possuir; não é a posse no sentido da comunidade branca, mas, sim, da comunidade indígena. Quer dizer, o conceito de posse é o conceito tradicional indígena, mas há um requisito fático e histórico da atualidade dessa posse, possuída de forma tradicional.”

Não há prejuízos nos direitos de uns ou outros, pois o novo decreto garante indenização tanto para proprietários de terras invadidas como TAMBÉM para índios, novidade até então inexistente na legislação, possibilitando tanto a indenização sob a forma de terras com “territórios e recursos de igual qualidade, extensão e condição jurídica” como também “indenização pecuniária ou de qualquer outra reparação adequada”.

Se justiça é garantir direitos iguais, não cabe reclamação, já que há possibilidade de indenização para ambas as partes, prestigiando principalmente o interesse e soberania nacional na distribuição de terras que não tragam maiores ameaças como ocorreu em faixas de fronteira sul-mato-grossenses, descuidadas pelos altos escalões do executivo onde já sustentei crime de responsabilidade neste sentido (http://ruralcentro.uol.com.br/analises/deixaram-a-porteira-aberta-5025#y=1300).

A correta distribuição de terras, prestigia acima de qualquer interesse particular, a função social da propriedade, preceito de ordem constitucional e nacional que, atualmente, se estende além de nossas fronteiras, pois o Brasil garante sustento alimentar do mundo, mesmo com o conjunto de leis ambientais mais restritivo, o qual estamos cumprindo plenamente na preservação dos recursos naturais como nenhum outro país faz com tamanha sustentabilidade.

E por falar em justa atualização normativa o art. 9º deste pretenso novo decreto garante que “O órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido”, afiançando em perfeição pleno acesso às informações públicas, sem contar maior acesso ao contraditório e ampla defesa, princípios constitucionais, consulta pública que “será objeto de divulgação pelos meios oficiais e pela internet, a fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam examinar os documentos relativos ao processo, fixando-se prazo para oferecimento de alegações escritas” (art. 10).

A ampliação do contraditório e ampla defesa é imprescindível e não ameaça direitos, mas os garante de forma mais nítida, sendo proposto pelo novo decreto a criação do Grupo Técnico dentro do Ministério da Justiça (art. 20), para subsidiar decisões do Ministro, vinculando a motivação de seus atos aos requisitos previsto nos novos artigos. 23 e 25, como também os requisitos constantes da decisão da Funai de maneira completamente motivada (artigos 11 e 12 do novo decreto)

Sobre a intenção de maquiar a aprovação da PEC215/2000 neste novo texto, não se sustenta, pois são assuntos diferentes, já que este primeiro pretende alterar o texto do art. 231 da Constituição Federal para “horizontalizar” o processo de demarcação ampliando do executivo também para o legislativo (Congresso) e o segundo altera regras do processo em trâmite no executivo.

Fato é que se deve organizar e priorizar os processos “emperrados” e mal instruídos em nome da paz social e da segurança jurídica trabalhando de forma harmônica entre os poderes, garantida tal prerrogativa pelo artigo 2º da Constituição Federal Brasileira.

A nova proposta de decreto não é inconstitucional e nem confronta o Decreto Federal nº 1.775/96, muito menos gera “nulidade de processos já concluídos”, pois neste sentido o ordenamento jurídico brasileiro prevê o ato jurídico perfeito, pois se já praticado, está convalidado.

Enfim, basta da inércia estatal neste assunto, pois lembrando o art. 67 da Constituição Federal os processos de demarcação deveriam ter sido concluídos após 05 (cinco) anos da promulgação da Lei Maior, inadmissíveis são ocupações/invasões de propriedades antes da conclusão dos devidos processos, pois ninguém pode ser expropriado de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, CF).

Bastam também os discursos que inflamam conflitos de “grupos” brasileiros que não deveriam gladiar entre si, todos somos cidadãos brasileiros, seja qual for sua ancestralidade, muito menos se deve admitir discussões “não técnicas” e ideológicas sempre colocando agronegócio contra povos indígenas, por tudo o que foi dito sobre a importância de nosso território para o mundo.

PEDRO PUTTINI MENDES, Consultor Jurídico no Agronegócio, Palestrante e Professor de Direito do Agronegócio, Tutor de Legislação e Políticas Públicas para o Agronegócio no Senar/MS (Rede e-Tec), Membro da UBAU – União Brasileira de Agraristas, Ex-Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS. Email: diretoria@pmadvocacia.com

 

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