Direito Agrário

Da Covid-19 e da anulação de negócio jurídico, inclusive de contratos agrários

Direito Agrário - Foto: Guilherme Medeiros

por Wellington Pacheco Barros.

 

Sumário: I – Introdução. II – Dos efeitos da COVID-19 na capacidade individual plena. III – Do negócio jurídico anulável – estado de perigo. IV – Da COVID-19 na anulação de contratos agrários.

 

I – INTRODUÇÃO    

Em sala de aula sempre tive a preocupação de alertar os alunos de que decorar os textos legais era bom, porém muito mais relevante era entender o sistema no qual estava inserido o conteúdo legislativo analisado. Isso por uma questão lógica: o direito positivo não previa todas as relações sociais passíveis de gerar conflitos

Esse alerta decorre de um comportamento pessoal de produzir doutrina. Não me sinto à vontade analisando textos postos. Prefiro partir deles para discorrer sobre situações hipotéticas. Aliás, o meu primeiro livro A INTERPRETAÇÃO SOCIOLÓGICA DO DIREITO, publicado em 1995, pela Livraria do Advogado Editora, bem demonstra isso – o exegeta deveria buscar no ambiente social de ocorrência do fato respostas para o que ainda não teve previsão legislativa. É bom deixar claro que não nego a necessidade da lei, mais também não a endeuso como única forma de exação do direito. Na resolução do conflito, ausente o dispositivo legal, não evoco o “meu” justo, mas aquilo que a sociedade entende como aceito.

Este artigo procura demonstrar que na ausência de ordenamento específico é possível se concluir que a COVID-19 pode causar nulidade no negócio jurídico, inclusive nos contratos agrários.

 

II – DOS EFEITOS DA COVID-19 NA CAPACIDADE INDIVIDUAL PLENA

 

A pandemia da COVID-19, segundo publicação da revista SCIENCE, de 26.07.2022, teve seu epicentro no mercado de frutos do mar de Wuhan, na China, e estava presente em animais vivos vendidos no mercado no final de 2019 e consumidos por humanos.

Sua propagação epidêmica levou governos a tomarem medidas de isolamento e vacinação em massa. No campo da individualidade, afastando a consequência maior que é a de causar a morte, a doença tem produzido sintomas que vão desde afetação da deambulação e perda de paladar, até a transtornos mentais.

A questão que trago é de um fato concreto que me foi submetido no sentido da doença causar alterações psíquicas graves levando o indivíduo acometido a praticar atos da vida que normalmente não praticaria e com isso produzindo efeitos grave nas consequências jurídicas advindas.

Antes, e complementando o pensamento exarado no tópico anterior, é preciso rememorar uma circunstância importante da gênesis do direito. Embora em um breve momento da história dessa ciência tivesse havido a pretensão de prendê-la ao passado no sentido do que o que foi, é, e deverá ser. Ou seja, os fatos da vida deveriam se pautar pela conduta jurídica prevista no passado. No entanto consolidou-se o pensamento de que ele deve ser dinâmico como a própria vida.

Isso porque como ciência de controle social ele não pode ser estático ou deixará de ter eficácia. Apesar de em alguns países, como o Brasil, tentar prendê-lo em legislação, esta tem que ser atualizada para pautar os novos fatos da vida.

Retomando sobre os efeitos da COVID-19 no estado psíquico do indivíduo, é possível se afirmar que esse hiato na personalidade não é matéria que se exaure na exclusividade do direito.

Dizer se um indivíduo foi afetado psiquicamente pela COVID-19 é ato exclusivamente médico. Essa afetação, todavia, adquire contorno jurídico se o ato médico demonstrar que no momento da efetivação do negócio jurídico uma das partes não tinha capacidade plena para realiza-lo.

Quero deixar claro que que o que estou tentando dizer não é o da doença causar a incapacidade absoluta e permanente. Que é possível. Mas de alterar a psique em determinado momento, exatamente naquele que o indivíduo acomertido pratica um ato jurídico negocial.

Segundo a manifestação de um psiquiatra amigo, um laudo nesse sentido passa por uma avaliação resultante de vários encontros, onde serão analisados a história de vida que forjou a personalidade do paciente. O ponto forte é a análise do que ocorreu com a pandemia da COVID19, como, por exemplo, se desenvolveu um grande temor de contaminar a si e à sua família. Sintomas como tristeza, ansiedade, alteração do sono e apetite são fatos sugestivos de um quadro depressivo e ansioso. Também é sugestiva a ocorrência de quadro de estresse agudo nesse período. A decisão de fazer um negócio jurídico pode ter sido permeada por emoções e impulsos não adequados ao momento, levando a equivocada e precipitada escolha de fazê-lo. A situação psíquica pode passar, mas depois o indivíduo se questiona sobre o caminho escolhido.

Portanto, o laudo psiquiátrico pode concluir de forma retroativa  que características pessoais, sintomatologia depressiva e ansiosa e o estresse agudo na época precipitou a decisão equivocada de realização de um negócio jurídico.

Não bastasse a manifestação médica, a prova testemunhal especialmente de pessoas próxima ao examinando poderão reforçar o conteúdo médico especialmente para demonstrar que o comportamento no momento do negócio jurídico era anormal.

III – DO NEGÓCIO JURÍDICO ANULÁVEL – ESTADO DE PERIGO

Demonstrado que o ato de vontade de negociar não foi livre porque cerceado pela COVID-19 é preciso repercutir de que forma isso é aceito pelo direito.

E a resposta é que o ato praticado está sob a tutela do chamado estado de perigo.

Sim. A repercussão jurídica encontra resposta no típico estado de perigo previsto no art. 156 do Código Civil, que, como regra geral, é aplicável a toda manifestação de vontade.

Todavia, o legislador teve a cautela de acrescer um requisito econômico considerável: o hiato psíquico tem que resultar em um negócio jurídico excessivamente oneroso para quem o praticou. Logo, se a doença causar transtorno psíquico, mas não resultar no surgimento de uma obrigação excessivamente onerosa, a doença não será causa de sua anulação.

Diz o art. 156 do Código Civil:

Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”.

Em outras palavras, o estado de perigo ocorre quando uma pessoa pratica um ato jurídico, e esse é completamente oneroso para o próprio, porque a sua vida ou saúde, ou a de alguém de sua família, se encontra na iminência de risco.

O estado de perigo é também conhecido como um vício de consentimento do negócio jurídico, assim sendo uma inovação do atual Código de Civil de 2002, uma vez que o Código Civil de 1916 não dispunha desse dispositivo.

Neste diapasão, nota-se que, o estado de perigo sempre irá ocorrer quando alguém se encontrar em numa situação de iminente perigo, movido em salvar-se, ou alguém de seu seio familiar, ou até mesmo alguém com quem tenha forte vínculo afetivo, assume uma obrigação desproporcional e extremamente onerosa. Tornando-se anulável o ato celebrado nessas condições.

Para uma melhor ilustração do estado de perigo, por exemplo, é o pai que precisa realizar urgentemente um procedimento cirúrgico em seu filho para salvar-lhe a vida, diante do eminente perigo assume obrigação de arca com os custos dos procedimentos hospitalares, excessivamente oneroso, sem que tenha fundos suficientes para honrá-los. Ou mesmo, o náufrago que oferece todo seu patrimônio em troca que lhe salvem a vida.

Oportuno ressaltar, que o ponto central da questão a ser verificada é aquela na qual o indivíduo se encontra em risco do dano à vida ou à saúde, própria ou de terceiros, seja o fator determinante da realização do negócio extremamente desfavorável, já que a vítima não tem outra alternativa.

A doutrina enumera os seguintes pontos para se tipificar o estado de perigo:

1 – Uma situação de necessidade, isto é, o agente deve estar premido da “necessidade” de salvar-se, ou a pessoa de sua família;

2 – Iminência de dano atual e grave, isto é, o perigo de dano deve ser iminente, capaz de incutir receio de que, se não for afastado, as consequências certamente ocorrerão. Essa característica é fundamental para que exista o estado de perigo, pois caso contrário, o agente terá tempo de evitar a sua consumação.

3 –  Nexo de causalidade entre a declaração e o perigo de grave dano, ou seja, a vontade deve se apresentar distorcida em consequência do perigo de dano.

4 –  Incidência da ameaça do dano sobre a pessoa do próprio declarante ou de sua família, ou seja, o perigo e a ameaça devem recair sobre essas pessoas. O dano possível pode ser físico e moral.

5 – Conhecimento do perigo pela outra parte, isto é, no estado de perigo, há, em regra, um aproveitamento da situação para obtenção de vantagem. Como forma de sanção é feita a anulação do negócio jurídico, no entanto se a parte que prestou o serviço não sabia do perigo e agiu de boa-fé, não se anula o negócio.

6 – Assunção de obrigação excessivamente onerosa, ou seja, é necessário que as condições sejam significativamente desproporcionais, capazes de provocar desequilíbrio contratual.

O Código Civil, em seu art. 178, inciso II, diz que o prazo decadencial para anular o negócio jurídico viciado por estado de perigo é de quatro anos.

Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado.

I – No caso de coação, do dia em que ela cessar;

II – No de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico;

III – No de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade.

 

IV – DA COVID-19 NA ANULAÇÃO DE CONTRATOS AGRÁRIOS

Transpondo isso para o direito agrário, tenho que os contratos agrários são negócios jurídicos nominados e dessa forma é possível identificar-se o estado de perigo quando, por exemplo, o arrendador para conseguir dinheiro para uma situação médica de urgência sua ou de sua família arrenda o seu imóvel por valor infinitamente fora do mercado ou na mesma situação toma empréstimo bancária à título de custeio de lavoura, o chamado crédito rural, se comprometendo a pagar juros fora das previsões legais que cercam este topo de contratação.

Por fim, é de se observar que, as situações não previstas no Estatuto da Terra ou no seu Regulamento, são supridas pela legislação civil, conforme previsão expressa do art. 88 do Decreto nº 55.566/1966, que diz:

Art. 88. No que forem omissas as Leis 4.504-644.947-66 e o presente Regulamento, aplicar-se-ão as disposições do Código Civil, no que couber.

Wellington Pacheco Barros – Advogado sócio de Wellington Barros Advogados Associados (www.wba.adv.br). Desembargador aposentado do TJRS. Professor universitário em várias instituições, detre elas Escola da Ajuris e o IDCC. Especialista e Mestre em Direito. Conferencista e Palestrante em eventos nacionais e internacionais. Autor de mais de 100 artigos jurídicos e 55 livros, dentre eles o Curso de Direito Agrário (Livraria do Advogado – 9ª edição) e o Curso de Direito Ambiental (Editora Atlas). Comendador da UFSM. Membro fundador da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU.