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Direito Agrário - Foto: Bernardo Poletto

Distinções entre as teorias da imprevisão, da onerosidade excessiva e da quebra da base objetiva do negócio jurídico a partir da jurisprudência do STJ

por Fabiano Cotta de Mello.

É oportuno estabelecer as distinções entre as teorias da imprevisão, da onerosidade excessiva e da quebra da base objetiva a partir dos entendimentos já externados pelo STJ, mormente em tempos de pandemia da COVID-19.

As três teorias são o instrumental que autoriza a revisão judicial do negócio jurídico bilateral de execução continuada ou diferida e têm gênese na cláusula rebus sic stantibus, apresentando-se como construções doutrinárias para a flexibilização do princípio da obrigatoriedade do contrato em decorrência de fatos supervenientes e não domináveis pela vontade dos contratantes.[1]

Note-se que à aplicação dessas teorias, o descumprimento da obrigação contratual deve decorrer de circunstâncias supervenientes que dificultem (mas não impossibilitem) a continuação da relação negocial. Acaso a circunstância superveniente, não atribuível ao devedor, torne impossível o cumprimento da obrigação, a solução não será a revisão, mas a extinção do contrato por impossibilidade, nos termos do art. 244 do CC/2002 (inadimplemento absoluto).[2]

A ideia não é traçar aqui o histórico e desdobramentos das aludidas teorias nem revisitar os grandes doutrinadores nacionais e estrangeiros sobre o tema, mas sim, de forma bastante objetiva, sintetizar o atual entendimento do STJ sobre a matéria, a partir da fundamentação dos julgamentos mais relevantes do repertório jurisprudencial daquela corte superior.

A lei civil estabelece como pressuposto da aplicação da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, a existência de um fato imprevisível em contrato de execução continuada ou diferida, que imponha consequências indesejáveis e onerosas a um dos contratantes.

A partir da dicção dos arts. 317 e 478 do CC/2002, o STJ distingue a teoria da imprevisão da teoria da onerosidade excessiva, consignando que a intervenção do Poder Judiciário nos contratos a título corretivo exige a demonstração de evento superveniente imprevisível (teoria da imprevisão) ou de evento superveniente imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva), que comprometam o valor da prestação de uma das partes contratantes.[3]

 

TEORIA DA IMPREVISÃO

 

No trato legislativo, o art. 317 do CC/2002 contempla a possibilidade de revisão judicial do contrato com base na cláusula rebus sic stantibus (teoria da imprevisão) e, no artigo 478 o código autoriza a resolução do contrato por onerosidade excessiva. No âmbito do CDC, a onerosidade excessiva pode levar à resolução do contrato ou à revisão do pactuado, como se infere do art. 6º, inc. V, 1ª parte. Muito antes da vigência do CC/2002, a possibilidade de resolução contratual por onerosidade excessiva já estava previsto na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (art. 65, inc. II, “d”, da Lei nº 8.666/93).

 Demonstrar a imprevisibilidade do evento superveniente é comprovar que ele é um evento anômalo, anormal e, por isso, deve ser colocado fora da possibilidade de razoável previsão e controle pelas partes contratantes.

Aqui é importante não confundir fatos em tese previsíveis com fatos concretamente imprevisíveis. Nesse sentido, a pandemia do coronavírus é um ótimo exemplo. Malgrado uma pandemia viral seja um fato em tese previsível (há estudos científicos, inclusive, que já tratavam dessa possibilidade), deve ser considerado concretamente como imprevisível para fins de revisão ou resolução contratual, porque esse evento anormal desequilibra drasticamente a execução do pactuado.

A demonstração de que esse fato imprevisível alterou a base econômica original do contrato é essencial à revisão judicial do valor da prestação devida, nos termos do art. 317 do CC/2002, que — lastreado na noção de proporcionalidade da relação entre as partes —, autoriza a adoção da teoria da imprevisão como forma de concretizar valores constitucionais relevantes como a justiça social e a equidade, previstos no art. 3º, inc. I, da CF/88.

A análise dos julgados do STJ evidencia uma criteriosa tendência de encarar a revisão contratual com base na teoria da imprevisão como uma excepcionalidade, exigindo ampla demonstração de alteração na economia original do contrato.

Por exemplo, já decidiu aquela corte superior que não configura evento anormal (imprevisível) para a revisão do valor original da prestação de aluguel comercial, a significativa desproporção do mesmo com o atual valor de mercado do imóvel, sob pena de configuração de indevida ingerência do Poder Judiciário na autonomia das partes que, ao considerarem as circunstâncias vigentes à época da realização do negócio – as quais permaneceram inalteradas -, elegeram o valor do aluguel e seu fator de atualização monetária.[4]

Em outros termos, o STJ reconheceu que o mero interesse econômico da locatária de obter a redução do valor locativo originariamente pactuado, sem qualquer respaldo em imprevista mudança na economia do contrato, refoge do propósito da ação de revisão do aluguel prevista no artigo 19 da Lei 8.245/91 e da teoria da imprevisão acolhida expressamente pelo art. 317 do CC/2002.[5]

 

TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA

 

Tratando-se de resolução do contrato por onerosidade excessiva, o art. 478 exige que o evento, além de ser imprevisível, seja extraordinário.[6]

Segundo o STJ, as requisitos legais à caracterização da onerosidade excessiva são: i) o contrato de execução continuada ou diferida, ii) vantagem extrema de outra parte e iii) acontecimento extraordinário e imprevisível, cabendo ao juiz, nas instâncias ordinárias, e diante do caso concreto, a averiguação da existência de prejuízo que exceda a álea normal do contrato, com a consequente resolução do contrato diante do reconhecimento de cláusulas abusivas e excessivamente onerosas para a prestação do devedor. [7] [8]

Vale anotar que, não obstante a literalidade do art. 478 do CC/02 indique apenas a possibilidade de resolução contratual, o STJ admite que o reconhecimento da onerosidade excessiva também pode ensejar apenas a revisão da avença, em nome do princípio da conservação dos negócios jurídicos, expressamente adotado em diversos dispositivos do CC/2002, como no parágrafo único do art. 157 e no art. 170, e também face ao disposto no art. 317 e 480 do mesmo diploma civil, que admite a correção do desequilíbrio contratual pelo juiz.[9]

Tratando-se da aplicação da teoria da onerosidade excessiva contemplada pelo art. 478 do CC/2002, o evento superveniente imprevisível e extraordinário causador de onerosidade excessiva que autoriza a resolução ou a revisão judicial do negócio jurídico é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação.[10] A qualificação do evento como extraordinário visa ressaltar que o fato, além de superveniente e imprevisível, deve estar fora dos riscos normais do contrato.[11]

A tese da onerosidade excessiva deve estar centrada na natureza comutativa do contrato — e não nas expectativas subjetivas iniciais dos contratantes —. Isso porque as prestações são sempre definidas pelo exercício da autonomia de vontade das partes, de modo que a álea a considerar é aquela baseada nos limites aceitáveis do equilíbrio contratual e não nas valorações de interesses precedentes à contratação.[12]

Todavia, quando o risco de uma onerosidade excessiva (desequilíbrio contratual), ainda que grave, constitui objeto do próprio negócio jurídico, a parte prejudicada não poderá postular revisão por onerosidade excessiva.

Não é vedada pelo ordenamento jurídico a exposição desigual das partes contratantes aos riscos do contrato, desde que, no momento da contratação, haja plena consciência dos riscos envolvidos na operação. A título exemplificativo, malgrado a alegação de violação aos arts. 317, 478, 479 e 480, todos do CC/2002 — em virtude de acontecimentos extraordinários e não previsíveis (a maxidesvalorização do real em relação ao dólar americano em 2008) que teria colocado a empresa cliente em situação de desvantagem excessiva em relação à instituição financeira —, o STJ negou a revisão de contratos de derivativos financeiros firmados entre as partes (contrato de swap cambial)[13] face à inaplicabilidade da teoria da imprevisão e da impossibilidade de invocação de onerosidade excessiva, uma vez que essa modalidade contratual é dotada de álea normal ilimitada.[14]

O entendimento do STJ é no sentido de que os contratos de derivativos não admitem revisão ou resolução por excessiva onerosidade em razão da oscilação dos parâmetros financeiros de referência, v.g., a cotação cambial do dólar, mormente porque tal oscilação não é extraordinária e tampouco imprevisível. Mas sim, eleita livremente pelas partes contratantes, almejando lucro.

Além da variação cambial do dólar, também o STJ também manifesta-se pela inexistência do requisito da imprevisibilidade quando há desequilíbrio contratual decorrente de onerosidade excessiva face ao aumento da inflação ou de modificações do padrão monetário no país, como ocorreu quando do Plano Real.[15]

Já assentou aquela corte superior que o histórico inflacionário e as sucessivas modificações no padrão monetário experimentados pelo país desde longa data até julho de 1994, quando sobreveio o Plano Real, seguido de período de relativa estabilidade até a maxidesvalorização do real em face do dólar, ocorrida a partir de janeiro de 1999, não autorizam concluir pela inexistência de risco objetivo nos contratos firmados com base na cotação da moeda norte-americana, em se tratando de relação contratual paritária. Vale dizer, não se aplica nem a teoria da imprevisão nem a teoria da onerosidade excessiva, quando há um risco previsível como é a oscilação do câmbio quando se celebra um contrato em moeda estrangeira.

TEORIA DA QUEBRA DA BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO JURÍDICO

 

A questão da base do negócio jurídico é a modificação da realidade subjacente do contrato comutativo, geradora de uma distribuição anômalo dos riscos do contrato entre as partes.

Diversamente das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva (CC/2002, arts. 317 e 478), a superveniência de fato imprevisível em contrato de execução continuada ou diferida não é pressuposto à aplicação da teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico no direito brasileiro, nos termos do art. 6º, inc. V, 2ª parte, do CDC.[16]

Historicamente, um dos setores mais importantes da aplicação da base objetiva do negócio jurídico foram o das alterações da prestações em razão da inflação, e também o das modificações resultantes dos atos do Estado de intervenção na economia, como sucede com a fixação dos preços máximos e mínimos.[17] Daqui para frente, aposta-se que sua maior aplicação decorrerá de alterações na economia dos contratos decorrentes da pandemia do novo coronavírus e/ou de suas medidas de enfrentamento.

Como preleciona Clóvis do Couto e Silva, a base objetiva do negócio jurídico decorre de uma tensão ou polaridade entre os aspectos voluntaristas do contrato — aspecto subjetivo — e o seu meio econômico — aspecto institucional — o que relativiza, nas situações mais dramáticas, a aludida vontade, para permitir a adaptação do contrato à realidade subjacente.[18]

A noção de base do negócio jurídico é relevante à compreensão de como as modificações nas circunstâncias intrínsecas existentes à época da celebração do contrato podem conduzir à quebra da base negocial.[19]

O pressuposto à aplicação da teoria da base objetiva é partir da premissa de que as circunstâncias intrínsecas verificadas quando da celebração do contrato devem se manter durante a sua execução. Todavia, se essas circunstâncias forem modificadas no curso da relação contratual e causarem desequilíbrio das obrigações pactuadas, o Poder Judiciário poderá intervir para readequar o contrato, de modo a resgatar, tanto quanto possível, o equilíbrio contratual.

Logo, a revisão dos negócios jurídicos com base na teoria da quebra da base objetiva prescinde da ocorrência de fato superveniente imprevisível (e tanto menos extraordinário).

Assim, poder-se-ia concluir que nos contratos bilaterais de execução continuada ou diferida, celebrados antes de 20 de março de 2020, se a parte  supostamente prejudicada demonstrar que, por conta da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) que é a pandemia da COVID-19 (ou por conta das medidas para seu combate, como isolamento, quarentena, restrições excepcionais e temporárias de entrada no País e de locomoção interestadual e intermunicipal, requisição administrativa de bens e serviços, proibição excepcional e temporária de exercício de atividade econômica, etc.), a execução das obrigações contratadas acarretará encargos ou lhe causará um prejuízo, cuja importância ultrapassará em muito as previsões que poderiam ter sido razoavelmente feitas à época da celebração do contrato, o contratante terá direito à resolução ou à revisão/suspensão judicial (parcial ou total) do negócio jurídico, com fundamento na aplicação da teoria da quebra da base objetiva.[20] [21]

Todavia, diversamente do que alguns juristas têm defendido, à luz da atual jurisprudência do STJ, a aplicação da teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico é extremamente acanhada, restringindo-se às relações de consumo, em que há uma parte contratualmente vulnerável. Não é ela a tábua de salvação nem a resposta tão procurada ao reequilíbrio das relações negociais civis e empresariais regidas pela lei geral civil e afetadas pela crise decorrente do coronavírus porque o STJ, ao menos até aqui, entende que a ampliação de sua aplicação pode gerar indesejada insegurança jurídica nas relações negociais em geral.

Portanto, no que concerne a essa teoria, é necessário frisar que o STJ, em nome do princípio do pacta sunt servanda e da necessária segurança jurídica nas relações negociais, tem atribuído aplicação restritiva à revisão negocial por quebra da base objetiva, restringindo sua aplicação aos contratos de consumo.

No eterno dilema entre a conciliação de uma interpretação justa do contrato e a necessária segurança do tráfico jurídico, o STJ fez um clara opção pela segurança. Todavia, não se pode desconsiderar que os argumentos aventados para a aplicação restritiva da teoria são relevantes.

O primeiro é no sentido de que no ordenamento jurídico pátrio a revisão de negócios jurídicos por superveniente e excessiva onerosidade da prestação de um dos contratantes — quando a causa do desequilíbrio entre as prestações for um fato previsível (teoria da base objetiva) — só tem guarida em relações contratuais que exigem especial proteção legal para uma das partes contratantes (relações não paritárias), como são as relações de consumo. Levando à conclusão de que o juiz só pode afastar a força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda) com fundamento na quebra da base negocial quando, em verdade, a parte contratante, pela natureza da relação negocial, nunca tiver experimentado ampla liberdade para contratar.[22]

Ainda mais relevante é o argumento de que não se pode admitir que qualquer alteração nas circunstâncias intrínsecas do negócio jurídico causadora de prejuízo a uma das partes possa autorizar a intervenção judicial com arrimo na teoria da quebra da base negocial.

Com base no Código Civil alemão, o STJ defende a ideia de que é pressuposto para aplicação da teoria da quebra da base do negócio a demonstração pela parte prejudicada de que se previsse a alteração da circunstância intrínseca à época da celebração do negócio, não o teria celebrado ou só o teria celebrado com outro conteúdo.[23]

Note-se que o pressuposto à aplicação da teoria da base objetiva — no que tange à previsibilidade do fato superveniente à contratação — não se confunde com o pressuposto para revisão judicial a partir das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva.

Nas teorias da imprevisão e onerosidade excessiva deve-se demonstrar que o fato superveniente que é a causa do desequilíbrio contratual era imprevisível à época da celebração do negócio. Por sua vez, para aplicação da teoria da quebra da base objetiva o contratante prejudicado deve demonstrar que, ainda que o fato superveniente que causou o desequilíbrio contratual não fosse imprevisível à época da contratação (fato previsível), as partes, ao contratarem, não assumiram o risco relativamente à ocorrência desse fato (ou seja, que se trata de álea contratual extraordinária).  Não haveria que se respeitar a alocação de riscos, pois ela não teria sido contemplada expressamente pelos contratantes no instrumento contratual.[24]

Portanto, a manifestação mais recente do STJ a respeito da aplicação da teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico autoriza concluir que, no direito brasileiro, a revisão judicial do negócio só está autorizada i) em relações negociais não paritárias, com especial proteção legal à parte vulnerável, ii) quando a parte prejudicada demonstrar que se previsse a alteração da circunstância intrínseca à época da celebração do negócio, não o teria celebrado ou só o teria celebrado com outro conteúdo, e iii) que a alteração superveniente da circunstância inicial não estava contemplada na distribuição contratual e legal dos riscos da contratação (inexistência de alocação de riscos estabelecida em contrato).

Acredita-se que o grande volume de litígios que decorrerão da pandemia do novo coronavírus exija uma reformulação da jurisprudência do STJ relativamente aos limites à aplicação da teoria da quebra da base do negócio jurídico. Mas isso já é tema para outro ensaio.

Notas:

[1] Os denominados contratos de duração, gênero do qual o contrato de execução continuada e o contrato de execução diferida são espécies, possuem uma fase intermediária entre o nascimento e a morte, na qual o programa desenhado pelo contratantes é executado, paulatinamente, em prestações sucessivas (execução continuadas; v.g., contrato de locação; prestação de serviços, de trabalho), ou aguarda um período de espera para ser executado tempos depois (execução diferida; v.g., contrato de transporte celebrado hoje e que ocorrerá em 60 dias), in FARIAS, Cristiano Chaves de. Manual de Direito Civil – Volume único / Cristiano Chaves de Freitas, Felipe Braga Netto, Nelson Rosenvald – Salvador: Ed. JUsPodivum, 2017, p. 999.

[2] Na hipótese de circunstância superveniente inimputável ao devedor e que gera a impossibilidade absoluta de cumprimento da obrigação, o credor não tem direito de invocar a resolução prevista no art. 475 do CC/2002, pois tal circunstância não faz surgir o direito potestativo à resolução contratual, mas sim a extinção da obrigação e liberação do devedor de reparar eventuais prejuízos.

[3] Traçando competente distinção entre a teoria da imprevisão e a teoria da onerosidade excessiva, o voto vencedor do Ministro VILLAS BÔAS CUEVA no julgamento do REsp 1.321.614-SP, Terceira Turma do STJ, rel. originário Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 03.03.2015.

[4] REsp 1300831 / PR, Quarta Turma do STJ, rel. Min. MARCO BUZZI, DJe 30.04.2014.

[5] Amparo em ponderação reconhecida na sentença, o STJ concluiu que o manejo de ação revisional buscando alterar elemento essencial do contrato (preço), sem qualquer justificativa plausível (à luz da teoria da imprevisão), a não ser a vontade de reduzir os custos decorrentes do desenvolvimento de atividade comercial altamente rentável, constitui vedado comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium) por parte da locatária, revelando flagrante inobservância da cláusula geral da boa-fé objetiva. Como ponderado na sentença, “Se o valor dos alugueres convencionados no contrato teriam sido fixados em circunstâncias especiais, determinadas pela necessidade da locatária se estabelecer em região específica da cidade de Itajaí e pelo fato de poder abrigar um posto de combustível, tais fatores integraram a livre negociação entre as partes que, no momento da contratação, houveram por bem em definir o valor locativo em montante superior ao dos demais imóveis disponíveis no mercado de Itajaí.”

[6] O Enunciado nº 175 do Conselho de Justiça Federal prevê que A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz.

[7] REsp 1034702/ES, Quarta Turma do STJ, rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe 05.05.2008.

[8] Na autorizada lição de Judith MARTINS-COSTA, são necessários à revisão ou resolução contratual com base no art. 478 do CC/2002, a comprovada realização das condições – inafastáveis e cumulativas a saber: (i) que o contrato não se classifique como de execução instantânea; (ii) que o fator de desequilíbrio seja superveniente, isto é, que o evento causador da excessiva onerosidade seja superveniente à conclusão de contrato comutativo, ou de seu aditamentos; bem como que o evento causador do desequilíbrio: (iii) tenha sido, no momento da conclusão do contrato (ou da sua renovação, ou do aditamento), imprevisível às partes; (iv) não seja imputável à parte que o alega; (v) cause a uma das partes <<onerosidade excessiva>> e (vi) à outra parte <<extrema vantagem>> e (vii) escape ao risco próprio do negócio, isto é: que o risco não se classifique como <<risco normal do negócio>>.

Tratando-se de relação de consumo, por incidência da segunda parte do inc. V do art. 6º do CDC, cabe a revisão quando caracterizadas e comprovadas a ocorrência de fatos supervenientes que tornem as prestações excessivamente onerosas, desimportando à revisão, no caso de relação de consumo, que os fatos sejam previsíveis ou imprevisíveis à época da contratação (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. – 2. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 655 e 656).

[9] REsp 977007 / GO, Terceira Turma do STJ, rela. Mina. NANCY ANDRIGHI, DJe 02.12.2009.

[10] A propósito, o enunciado nº 366 da IV Jornada de Direito Civil: Art. 478: o fato extraordinário e imprevisível causado de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação.

[11] Segundo o STJ o advento de doença em lavoura de soja (“ferrugem asiática”), não constitui fato extraordinário e imprevisível, apto a fundar pedido de resolução de contrato de compra e venda de safra futura em razão de onerosidade excessiva com fundamento no art. 478 do CC/2002.

[12] Já decidiu o STJ que se o produtor rural vende antecipadamente parte de sua produção por preço certo, contando que um excesso de colheita derrubará os preços, quando de fato ocorre uma escassez global do produto de forma a elevar seu valor na data da entrega, não poderá invocar a tese da onerosidade excessiva, pois não há superveniência de fato extraordinário e imprevisível (REsp 977007 / GO, Terceira Turma do STJ, Rela. Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe 02.12.2009).

[13] A categoria dos derivativos compreende todos os contratos atípicos, de natureza financeira, consistentes na negociação a termo de uma importância econômica e na relativa valorização autônoma do diferencial decorrente do confronto entre o preço da importância no momento da estipulação e seu valor no prazo acordado para a execução. Entre as operações de derivativos mais comumente utilizadas estão os contratos futuros (futures), as opções (options), os contratos a termo (forwards) e os contratos de troca

ou ajuste de fluxos de caixa (swaps). Para uma noção geral sobre contratos de derivativos, conferir: BANDEIRA, Paula Greco. In: Os contratos de derivativos e a teoria da imprevisão. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 100, n. 904, p.  97-122, fev. 2011.

Sobre a origem e evolução dos contratos de swap, ver: MARTINS-COSTA, Judith. Contratos de derivativos cambiais: contratos aleatórios: abuso de direito e abusividade contratual: boa-fé objetiva: dever de informar e ônus de se informar: teoria da imprevisão: excessiva onerosidade superveniente. In: Revista de direito bancário e do mercado de capitais, v. 15, n. 55, p. 321-381, jan./mar. 2012.

A inaplicabilidade do CDC aos contratos de derivativos decorre do fato de tutelarem propósitos e interesses incompatíveis com as relações de consumos, como hedge (gerenciamento de riscos), alavancagem, especulação e arbitragem. Trata-se de relação jurídica interempresarial. Conferir: Os contratos de derivativos e a impossibilidade de revisão por onerosidade excessiva ou imprevisão. In: WALD, Arnoldo; GONÇALVES, Fernando; CASTRO, Moema Augusta Soares de (Coord.). Sociedades anônimas e mercado de capitais: homenagem ao Prof. Osmar Brina Corrêa-Lima. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 153-180.

Defendendo que os contratos de derivativos são aleatórios por dizerem respeito (i) a coisas ou fatos futuros, com risco de não virem a existir; (ii) existirem em qualquer quantidade; (iii) ou ainda a coisas existentes, mas expostas a risco: STEIN, Raquel. Contrato de swap. In: Contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 474.

[14] Resp. nº 1.689.225 – SP, Terceira Turma do STJ, rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 25.05.2019.

[15] RESp 744446/DF, 2ª T. do STJ, rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 05.05.2008: Não se mostra razoável o entendimento de que a inflação possa ser tomada, no Brasil, como álea extraordinária, de modo a possibilitar algum desequilíbrio na equação econômica do contrato, como há muito afirma a jurisprudência do STJ; AgRg no REsp 1518605/MT, 3ª T. do STJ, rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 12.04.2016: A  variação ocorrida no valor da moeda americana ao final do ano de 2008, com reflexo no contrato de compra e venda de fertilizantes, indexado  com  base  na  variação  do dólar americano, não se revela imprevisível  a  ponto  de autorizar o Poder Judiciário, com base na Teoria da Imprevisão, a proceder à sua revisão e alterar o indexador estipulado; e REsp  1321614/SP, 3ª T. do STJ, rel. p/acórdão  Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 03.03.2015: O histórico inflacionário e as sucessivas modificações no padrão monetário  experimentados  pelo  país  desde longa data até julho de 1994,  quando sobreveio o Plano Real, seguido de período de relativa estabilidade  até  a  maxidesvalorização  do  real  em face do dólar americano,  ocorrida  a  partir  de  janeiro  de 1999, não autorizam  concluir  pela  imprevisibilidade  desse fato nos contratos firmados com  base  na  cotação  da  moeda norte-americana, em se tratando de relação contratual paritária.

[16] Sobre a diferença básica entre as teorias que explicam a imprevisão e a base do negócio, cf. a doutrina de Luís Renato Ferreira da Silva: “Várias foram as formulações teóricas que buscaram explicar como operava a imprevisão e quais os seus requisitos. Fundamentalmente, pode-se traçar uma divisão entre teorias com um caráter mais voluntarístico e outras com cunho mais objetivo. As primeiras acabaram por desembocar na moderna versão da teoria da imprevisão, a chamada onerosidade excessiva, modelo adotado pelo Código Civil italiano e seguido pelo Projeto de Novo Código Civil brasileiro.

O segundo grupo, tendendo cada vez mais para os dados objetivos, origina a teoria da quebra da base do negócio jurídico, esteada na doutrina alemã, com forte influência anglo-saxônica e parcialmente acolhida no novo Código de Defesa do Consumidor. Pode-se ter como paradigmas deste ramo, tanto as disposições do Código Civil português, como as do Uniform Commercial Code e do Restatement (Second) of Contracts dos Estados Unidos” (Revisão de Contratos: Do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 101 e 102).

[17] SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto e Silva; org. Vera Maria Jacob de Fradera. 2. ed. rev. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014 (A teoria da base do negócio jurídico no Direito Brasileiro – Extrato de parecer, publicado na Revista dos Tribunais nº655, 1990).

[18] Idem.

[19] Sobre as duas vertentes da teoria da base do negócio jurídico a partir da doutrina de Karl Larenz, ver: BAPTISTA, Sílvio Neves. A crise do contrato in Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos. vol. 3. pág. 929, jun/2011: “(…) A expressão ‘base do negócio’ deve ser entendida num duplo sentido: primeiro, como a base subjetiva de determinação da vontade de uma ou das duas partes, numa representação mental construída por ocasião da conclusão do negócio, conhecida e aceita por ambas as partes; segundo, como base objetiva do contrato, compreendida esta como o conjunto de circunstâncias cuja existência ou persistência pressupõe devidamente o contrato. Os supostos do fato da base do negócio subjetiva são diferentes da base do negócio objetiva, posto que a primeira alude aos motivos do negócio e aos vícios da vontade, e a segunda diz respeito ao conjunto de circunstâncias necessárias a que o propósito das partes seja atingido. Se as circunstâncias inexistem ou desparecem, o contrato perde o sentido e pode ser extinto.

[20] Fórmula inspirada nos efeitos jurídicos previstos pelo art. 2º da Lei Faillot, de 22 de janeiro de 1918.

[21] Aplica-se aqui o mesmo raciocínio do Enunciado nº 175 do Conselho de Justiça Federal em relação à intepretação do art. 478 do CC/2002 — ou seja, a quebra da base negocial pode decorrer do fato que gerou o desequilíbrio (pandemia), mas também das consequências que ele produziu (medidas estatais de enfrentamento à pandemia com, v.g., o isolamento e a quarentena) —.

[22] Sustento que, a partir desse raciocínio, a teoria da base pode ser invocada para além das relações de consumo quando comprovada a vulnerabilidade do contratante prejudicado pelo fato superveniente. Por exemplo, a teoria seria invocável nas relações contratuais regidas pela Lei do Inquilinato, pelo Estatuto da Terra, etc.

[23] As considerações do Ministro foram feitas com base no § 313 do BGB que, em 2002, introduziu a figura da alteração da base do negócio no Código Civil alemão:  “(1) Haben sich Umstände, die zur Grundlage des Vertrags geworden sind, nach Vertragsschluss schwerwiegend verändert und hätten die Parteien den Vertrag nicht oder mit anderem Inhalt geschlossen, wenn sie diese Veränderung vorausgesehen hätten, so kann Anpassung des Vertrags verlangt werden, soweit einem Teil unter Berücksichtigung aller Umstände des Einzelfalls, insbesondere der vertraglichen oder gesetzlichen Risikoverteilung, das Festhalten am unveränderten Vertrag nicht zugemutet werden kann.”).

Tradução: “(1) Se as circunstâncias que se tornaram a base do contrato tiverem mudado significativamente após a conclusão do contrato e as partes não o tivessem concluído ou o tivessem concluído com outro conteúdo se tivessem previsto essa alteração, poderá ser solicitado um ajuste do contrato, na medida em que, levando em consideração todas as circunstâncias do caso individual, em particular a distribuição contratual ou estatutária de riscos, não é de esperar a adesão ao contrato inalterado”).

[24] O CC/2002, no art. 393, prevê a possibilidade de as partes contratantes estabelecerem cláusula convencional de assunção de responsabilidade pelo inadimplemento, de modo que, se assim convencionarem, ainda que os prejuízos decorram de caso fortuito ou de força maior, o devedor será por eles responsabilizado.

Fabiano Cotta de Mello é advogado em Mato Grosso e Brasília, mestre em Direito pela UFMT, professor universitário e ex-assessor técnico-jurídico do TJRS e do TJMT.

Direito Agrário

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