“Aos particulares que ocupam terras públicas sem destinação específica é permitido o pedido judicial de proteção possessória. A possibilidade não retira o bem do patrimônio do Estado, mas reconhece a posse do particular, que garante a função social da propriedade e cristaliza valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia e o aproveitamento do solo.
O entendimento foi firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar recurso em ação de reintegração de posse entre dois particulares que disputam imóvel pertencente ao Distrito Federal. De forma unânime, o colegiado negou provimento ao recurso do ente público e manteve acórdão que determinou novo julgamento em primeira instância, após a abertura da fase de produção de provas.
A discussão original foi travada em ação de reintegração de posse entre dois particulares por área rural no DF. O autor alegou que, após 20 anos de posse no imóvel, foi surpreendido por invasão e parcelamento de metade da área pelo réu.
Ainda na primeira instância, o Distrito Federal ingressou na ação como interveniente anômalo, conforme definido no artigo 5º da Lei 9.469/97, alegando ter havido parcelamento irregular do solo.
Possibilidade jurídica
O juiz considerou improcedente o pedido de reintegração por entender que, como a área discutida nos autos estava situada em terra pública, não havia direito de posse a ser defendido pelos dois particulares.
A sentença foi cassada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF). Após confirmar a possibilidade jurídica do pedido de disputa possessória por particulares em imóveis do poder público, os desembargadores entenderam haver necessidade da produção de prova oral e pericial para determinação da posse.
Com a modificação do julgamento na segunda instância, o Distrito Federal apresentou recurso especial ao STJ. Alegou ser impossível ao particular o pedido de proteção possessória sobre imóvel de natureza pública, pois ele, nesses casos, possui mera detenção do bem, não havendo possibilidade do cumprimento dos pressupostos estabelecidos pelo Código de Processo Civil de 1973.
Possuidores
O relator do caso na Quarta Turma, ministro Luis Felipe Salomão, esclareceu inicialmente que, segundo o artigo 1.196 do Código Civil, considera-se possuidor aquele que tem de fato o exercício, de forma plena ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Salomão também lembrou a importância de diferenciar os casos em que pessoas invadem imóvel público e posteriormente almejam proteção possessória e os litígios em que, como no recurso analisado, são levantadas questões possessórias entre particulares por imóvel situado em terras públicas.
O ministro destacou que as turmas de direito privado do STJ costumavam caracterizar o ocupante de bem público como mero detentor do imóvel, sem legitimidade para pleitear proteção possessória ou indenização por benfeitorias realizadas.
Todavia, Salomão enfatizou a recente evolução de posicionamento dos colegiados do tribunal no sentido de que, dependendo do caso, é possível a discussão possessória em bens dessa natureza por particulares, ‘devendo a questão ser interpretada à luz da nova realidade social’.
A evolução de entendimento leva em conta o conceito de bens públicos dominicais, definidos pelo Código Civil como aqueles que, apesar de fazerem parte do acervo estatal, encontram-se desafetados, sem destinação especial e sem finalidade pública. Em imóveis desse tipo, o particular exerce poder fático sobre o bem e lhe garante sua função social, podendo propor interditos possessórios contra terceiros que venham a ameaçar ou violar sua posse.
Aproveitamento concreto
‘Em suma, não haverá alteração na titularidade dominial do bem, que continuará nas mãos do Estado, mantendo sua natureza pública. No entanto, na contenda entre particulares, reconhecida no meio social como a manifestação e exteriorização do poder fático e duradouro sobre a coisa, a relação será eminentemente possessória e, por conseguinte, nos bens do patrimônio disponível do Estado, despojados de destinação pública, será plenamente possível — ainda que de forma precária —, a proteção possessória pelos ocupantes da terra pública que venham a lhe dar função social’, resumiu o relator.
No voto, que foi acompanhado de forma unânime pelo colegiado, Salomão também destacou que a posse deve ser analisada de forma autônoma em relação à propriedade, por ser fenômeno de relevante densidade social.
Para o ministro, a posse deve expressar o aproveitamento concreto e efetivo do bem para o alcance do interesse existencial, ‘tendo como vetor de ponderação a dignidade da pessoa humana, sendo o acesso à posse um instrumento de redução de desigualdades sociais e justiça distributiva’”.
Fonte: STJ, 08/11/2016.
Confira a íntegra da decisão:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.296.964 – DF (2011/0292082-2)
RECORRENTE : DISTRITO FEDERAL
PROCURADOR : ANA MARIA ISAR DOS SANTOS GOMES E OUTRO(S) – DF013048
RECORRIDO : MIGUEL GONÇALVES DE MELO
ADVOGADO : WALTER DE CASTRO COUTINHO – DF005951
RECORRIDO : MIGUEL ANGEL VILLAR BUSTO
ADVOGADO : PAULO HENRIQUE PERNA CORDEIRO – DF018559
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. Miguel Gonçalves de Melo ajuizou ação de reintegração de posse em face de Miguel Angel Villar Busto, aduzindo que o requerido, após 20 anos na posse do imóvel (situado na chácara 40 ou 33-A, Colônia Agrícola Vereda Cruz, Águas Claras-DF), invadiu metade de sua área, além de ter efetuado parcelamento irregular.
A Terracap, na qualidade de proprietária do terreno, foi devidamente intimada, mas não demonstrou interesse em integrar o feito.
Por sua vez, o Distrito Federal – DF postulou sua intervenção anômala (art. 5° da Lei n. 9.469/97), haja vista se tratar de hipótese em que houve fracionamento irregular do solo.
O magistrado de piso julgou improcedente o pedido, ao entendimento de que, por se tratar de terra pública, não se poderia pleitear proteção possessória, faltando às partes o direito substancial passível de tutela (fls. 296-304).
Interposta apelação pelo autor (fls. 307-319), o Tribunal local deu provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. BEM PÚBLICO. DISCUSSÃO ENTRE PARTICULARES. POSSIBILIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. PRELIMINAR ACOLHIDA.
1. Não há que se falar em impossibilidade jurídica do pedido quando a disputa possessória é travada entre particulares, ainda que sobre bem público.
2. Na hipótese em que o feito não se mostra suficientemente instruído a ponto de oportunizar, com o mínimo de segurança jurídica, decisão acerca da melhor “posse”, mister reconhecer o cerceamento de defesa decorrente do julgamento antecipado da lide.
3. Se a causa não se encontra madura para julgamento, fica impedida a apreciação do mérito da demanda em segundo grau de jurisdição, sendo incabível a aplicação do artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil.
4. Recurso provido. Sentença cassada.
(fls. 347-357)
Opostos aclaratórios, foram rejeitados (fls. 368-371). Irresignado, o DF interpõe, na qualidade de interventor anômalo, recurso especial com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, por vulneração aos arts. 535 e 927 do CPC e 1.208 do CC.
Além de afirmar que o acórdão foi omisso, sustenta que é juridicamente impossível o pedido de proteção possessória movido por particular sobre imóvel de natureza pública, pois trata-se de mera detenção e, não podendo o autor demonstrar o cumprimento dos pressupostos específicos do art. 927 do CPC/73, deve-se extinguir o processo, sem julgamento do mérito, por impossibilidade jurídica do pedido.
Aduz que, apesar de o imóvel ser de propriedade da Terracap, o recorrente tem interesse econômico no feito, a justificar a sua intervenção, haja vista que a área cuja posse reinvindica foi irregularmente parcelada, ao arrepio da Lei 6.766/79, além de que, por estar carente de prévio licenciamento ambiental, estar-se-ia diante de atividade potencialmente poluidora, violando a Lei 6.938/81.
Alega que “eventual outorga de proteção possessória a qualquer das partes do processo acabará por respaldar a ocupação clandestina da área em comento, acarretando prejuízos à ordem urbanística, edilícia e ao meio ambiente, com reflexos indiretos na ordem econômica”, até porque, como o imóvel pertence ao patrimônio público, eventual reconhecimento de posse incorrerá em prejuízo direto ao erário.
Não foram apresentadas contrarrazões ao especial (fls. 399).
O recurso recebeu crivo de admissibilidade positivo na origem (fls. 401-403).
É o relatório.
VOTO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. Primeiramente, verifica-se que não há falar em violação ao art. 535 do Código de Processo Civil, pois o Tribunal a quo dirimiu as questões pertinentes ao litígio, afigurando-se dispensável que tivesse examinado uma a uma as alegações e os fundamentos expendidos pelas partes.
De fato, basta ao órgão julgador que decline as razões jurídicas que embasaram a decisão, não sendo exigível que se reporte de modo específico a determinados preceitos legais.
3. A discussão dos autos versa sobre a possibilidade de utilização de ação possessória entre particulares, quando o litígio é sobre imóvel considerado como bem público.
O voto condutor do Tribunal de origem assentou que:
[…]
Ora, ao contrário do que entendeu o douto Juiz a quo, tenho que o feito não estava suficientemente instruído a ponto de oportunizar, com o mínimo de segurança jurídica, decisão acerca da melhor “posse”.
Tanto o autor quanto o réu juntaram documentos – cessões de direitos – na tentativa de comprovar que detém o imóvel a justo título. Contudo, os referidos papéis se mostram deveras frágeis, havendo, inclusive, suspeitas de falsificação (fls. 11/15 e 125/136). Tanto assim que o próprio apelante afirma em suas razões recursais:
“Grandes as controvérsias no feito sobre quem efetivamente seria o ocupante de boa fé do imóvel litigado, ou mesmo o que possui melhor cadeia dominial” (fl. 293).
Vale destacar, data venia do entendimento externado em sede monocrática, consoante já me pronunciei em diversos julgados, não há que se falar em impossibilidade jurídica do pedido quando a disputa possessória é travada entre particulares, ainda que sobre bem público.
Essa mesma linha de pensamento vem sendo trilhada pela jurisprudência desta Corte, conforme se vê das ementas abaixo colacionadas:
[…]
Não obstante, para que tenha ensejo a discussão acerca da melhor “posse”, imperiosa a dilação probatória, oportunizando-se a produção de todos os meios de prova tendentes à comprovação do direito controvertido.
Assim, não restam dúvidas de que a causa não se encontra madura para julgamento, o que impede a apreciação do mérito da demanda em segundo grau de jurisdição, sendo incabível a aplicação do artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil.
Com essas considerações, dou provimento ao recurso para acolher a preliminar de cerceamento de defesa e, cassando a r. sentença, determinar o retorno dos autos à Vara de origem, para regular prosseguimento.
(fls. 347-354)
4. De plano, realço a competência da Seção de Direito Privado para o julgamento da causa.
É que, apesar de o recurso ser do Distrito Federal, a discussão em voga é a defesa da posse por litigantes particulares que habitam imóvel público.
Assim, nos termos do art. 9°, § 2°, do RISTJ, compete à Segunda Seção processar e julgar os feitos relativos a “I – domínio, posse e direitos reais sobre coisa alheia, salvo quando se tratar de desapropriação”.
Nesse sentido, aliás, são vários os precedentes deste colegiado, julgando casos semelhantes ao dos autos: REsp 1582176/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/09/2016, DJe 30/09/2016; REsp 1484304/DF, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 10/03/2016, DJe 15/03/2016; REsp 932.971/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/05/2011, DJe 26/05/2011; REsp 998.409/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma , julgado em 13/10/2009, DJe 03/11/2009; AgRg no Ag 648.180/DF, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 15/02/2007, DJ 14/05/2007; REsp 489.732/DF, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 05/05/2005, DJ 13/06/2005; REsp 146.367/DF, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 14/12/2004, DJ 14/03/2005.
5. Em relação à posse, o Código Civil atual, em seu art. 1.196, adotando predominantemente a teoria objetiva de Ihering, enuncia que: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
Isto é, para se ter posse basta o exercício de um dos atributos do domínio, sendo possuidor quem, em seu próprio nome, exterioriza alguma das faculdades da propriedade, seja ele proprietário ou não.
E, assim como dantes, o novo Código (art. 1210, caput) manteve a faculdade de o possuidor invocar interditos possessórios (interdito proibitório, manutenção de posse e reintegração de posse) para a proteção de sua posse ad interdicta, podendo a ação ser de força nova (possibilidade de concessão de liminar initio litis) ou de força velha (nos trilhos do procedimento ordinário), nos termos do art. 924 do CPC.
6. De outra parte, no tocante aos bens públicos, o STJ sempre entendeu que não se pode falar em posse, mas em mera detenção, o que acaba por afastar eventual retenção, ainda que à luz de alegada boa-fé.
Isto porque, conforme lição de Moreira Alves, ao contrário da posse, que é legalmente protegida, a detenção é a posse desqualificada pelo sistema jurídico vigente, não podendo o detentor manejar interditos possessórios, nem alcançar a propriedade pela usucapião, verbis:
Posse e detenção não se distinguem pela existência, naquela, de um animus específico, seja o animus rem sibi habendi, seja o animus domini. Ambas, pelo contrário, se constituem dos mesmos elementos: o corpus (que é o elemento exterior) e o animus (a affectio tenendi , que é o elemento interior).
Esses elementos, porém, não podem existir um sem o outro, ligados que estão intimamente como a palavra e o pensamento. O que, em verdade, distingue a posse da detenção é um outro elemento externo, e, portanto, objetivo, que se traduz no dispositivo legal que, com referência a certas relações que preenchem os requisitos da posse, retia delas os efeitos possessórios. E, por ser objetivo o elemento distintivo delas (o fator negativo representado pela disposição de lei), à sua teoria enominou Ihering teoria objetiva. Detenção, pois, para Ihering, é uma posse degradada.
(ALVES, José Carlos Moreira. Posse, II, 1. tomo: estudo dogmatico. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 60)
Nesse sentido:
ADMINISTRATIVO. OCUPAÇÃO DE ÁREA PÚBLICA POR PARTICULARES. JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO. MERA DETENÇÃO. CONSTRUÇÃO. BENFEITORIAS. INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
1. A ocupação de área pública, sem autorização expressa e legítima do titular do domínio, é mera detenção, que não gera os direitos, entre eles o de retenção, garantidos ao possuidor de boa-fé pelo Código Civil. Precedentes do STJ.
2.”Posse é o direito reconhecido a quem se comporta como proprietário. Posse e propriedade, portanto, são institutos que caminham juntos, não havendo de se reconhecer a posse a quem, por proibição legal, não possa ser proprietário ou não possa gozar de qualquer dos poderes inerentes à propriedade. A ocupação de área pública, quando irregular, não pode ser reconhecida como posse, mas como mera detenção. Se o direito de retenção ou de indenização pelas acessões realizadas depende da configuração da posse, não se pode, ante a consideração da inexistência desta, admitir o surgimento daqueles direitos, do que resulta na inexistência do dever de se indenizar as benfeitorias úteis e necessárias” (REsp 863.939/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 24.11.2008).
3. “Configurada a ocupação indevida de bem público, não há falar em posse, mas em mera detenção, de natureza precária, o que afasta o direito de retenção por benfeitorias” (REsp 699374/DF, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, DJ 18.6.2007).
4. “A ocupação de bem público não passa de simples detenção, caso em que se afigura inadmissível o pleito de proteção possessória contra o órgão público. Não induzem posse os atos de mera tolerância (art. 497 do Código Civil/1916)” (REsp 489.732/DF, Rel. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, DJ 13.6.2005).
5. “Tem-se como clandestina a construção, a qual está inteiramente em logradouro público, além do fato de que a sua demolição não vai trazer nenhum benefício direto ou indireto para o Município que caracterize eventual enriquecimento, muito pelo contrário, já que se está em discussão é a desocupação de imóvel público de uso comum que, por tal natureza, além de inalienável, interessa a toda coletividade” (REsp 245.758/PE, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, DJ 15.5.2000).
6. Recurso Especial provido. (REsp 900.159/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/09/2009, DJe 27/02/2012)
_______________
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. TERRA PÚBLICA. OCUPAÇÃO IRREGULAR. MERA DETENÇÃO. PROTEÇÃO POSSESSÓRIA. INADMISSIBILIDADE. VERBETE N. 83/STJ.
– Conforme precedentes do STJ, a ocupação irregular de terra pública não pode ser reconhecida como posse, mas como mera detenção, caso em que se afigura inadmissível o pleito da proteção possessória contra o órgão público. Incidência do verbete n. 83 da Súmula do STJ. Subsistente o fundamento do decisório agravado, nega-se provimento ao agravo. (AgRg no REsp 1200736/DF, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/05/2011, DJe 08/06/2011)
Deveras, o ocupante de bem público é tido com o mero detentor da coisa e, por conseguinte, não há falar em proteção possessória nem em indenização por benfeitorias ou acessões realizadas, por configurar desvio de finalidade (interesse particular em detrimento do interesse público), além de violação aos princípios da indisponibilidade do patrimônio público e da supremacia do interesse público.
É o que reconhece a jurisprudência da Casa:
PROCESSO CIVIL – ADMINISTRATIVO – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – IMÓVEL FUNCIONAL – OCUPAÇÃO IRREGULAR – INEXISTÊNCIA DE POSSE – DIREITO DE RETENÇÃO E À INDENIZAÇÃO NÃO CONFIGURADO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – EFEITO INFRINGENTE – VEDAÇÃO.
1. Embargos de declaração com nítida pretensão infringente. Acórdão que decidiu motivadamente a decisão tomada.
2. Posse é o direito reconhecido a quem se comporta como proprietário. Posse e propriedade, portanto, são institutos que caminham juntos, não havendo de se reconhecer a posse a quem, por proibição legal, não possa ser proprietário ou não possa gozar de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.
3. A ocupação de área pública, quando irregular, não pode ser reconhecida como posse, mas como mera detenção.
4. Se o direito de retenção ou de indenização pelas acessões realizadas depende da configuração da posse, não se pode, ante a consideração da inexistência desta, admitir o surgimento daqueles direitos, do que resulta na inexistência do dever de se indenizar as benfeitorias úteis e necessárias.
5. Recurso não provido. (REsp 863.939/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/11/2008, DJe 24/11/2008)
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PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. OCUPAÇÃO IRREGULAR DE BEM PÚBLICO. DIREITO DE INDENIZAÇÃO PELAS ACESSÕES. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO. (REsp 1183266/PR, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/05/2011, DJe 18/05/2011)
7. Partindo dessa premissa, ambas as Turmas da Seção de Direito Privado vinham privilegiando o entendimento de que, quando se estivesse diante de área pública, por se tratar de mera detenção, não seria possível a arguição de proteção possessória, ainda que entre particulares.
À guisa de exemplo:
Civil e Processo civil. Recurso especial. Ação possessória. Possibilidade jurídica do pedido. Bem imóvel público. Ação ajuizada entre dois particulares. Situação de fato. Rito especial. Inaplicabilidade.
– A ação ajuizada entre dois particulares, tendo por objeto imóvel público, não autoriza a adoção do rito das possessórias, pois há mera detenção e não posse. Assim, não cumpridos os pressupostos específicos para o rito especial, deve o processo ser extinto, sem resolução de mérito, porquanto inadequada a ação.
Recurso especial provido. (REsp 998.409/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 03/11/2009)
________________
INTERDITO PROIBITÓRIO. OCUPAÇÃO DE ÁREA PÚBLICA, PERTENCENTE À “COMPANHIA IMOBILIÁRIA DE BRASÍLIA – TERRACAP”. INADMISSIBILIDADE DA PROTEÇÃO POSSESSÓRIA NO CASO.
– A ocupação de bem público, ainda que dominical, não passa de mera detenção, caso em que se afigura inadmissível o pleito de proteção possessória contra o órgão público. Não induzem posse os atos de mera tolerância (art. 497 do CC/1916).
Recurso especial não conhecido. (REsp 146.367/DF, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 14/12/2004, DJ 14/03/2005, p. 338) __________________
Agravo regimental. Recurso especial não admitido. Manutenção de posse. Terra pública. Imóvel pertencente à Terracap.
1. O posicionamento do Tribunal está em perfeita harmonia com a jurisprudência da Corte, consolidada no sentido de que “a ocupação de bem público, ainda que dominical, não passa de mera detenção, caso em que se afigura inadmissível o pleito de proteção possessória contra o órgão público. Não induzem posse os atos de mera tolerância (art. 497 do CC/1916)” (REsp nº 146.367/DF, Quarta Turma, Relator o Ministro Barros Monteiro, DJ de 14/3/05).
2. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 648.180/DF, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/02/2007, DJ 14/05/2007, p. 280)
Ocorre que, recentemente, em situação bastante assemelhada à que ora se aprecia, a Terceira Turma, revendo seu posicionamento, reconheceu a possibilidade da tutela da posse de litigantes situada em bem público.
O julgado foi assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. ÁREAS PÚBLICAS DISPUTADAS ENTRE PARTICULARES. POSSIBILIDADE DO SOCORRO ÀS DEMANDAS POSSESSÓRIAS.
1. A ocupação de área pública, sem autorização expressa e legítima do titular do domínio, não pode ser confundida com a mera detenção.
2. Aquele que invade terras e nela constrói sua moradia jamais exercerá a posse em nome alheio. Não há entre ele e o proprietário ou quem assim possa ser qualificado como o que ostenta jus possidendi uma relação de dependência ou subordinação.
3. Ainda que a posse não possa ser oposta ao ente público senhor da propriedade do bem, ela pode ser oposta contra outros particulares, tornando admissíveis as ações possessórias entre invasores.
4. Recurso especial não provido. (REsp 1484304/DF, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe 15/03/2016)
8. É justamente em razão deste novo posicionamento que trago a julgamento o presente litígio.
Realmente, são duas situações que devem ter tratamentos bem distintos: i) aquela em que o particular invade imóvel público e almeja proteção possessória ou indenização/retenção em face do ente estatal e ii) as contendas possessórias entre particulares no tocante a imóvel situado em terras públicas.
Como visto, o particular, perante o Poder Público, exerce mera detenção e, por consectário lógico, não haveria falar em proteção possessória.
No entanto, assim como o fez a Terceira Turma, penso que entre particulares, a depender do caso em concreto, realmente é possível o manejo de interditos possessórios, devendo a questão ser interpretada à luz da nova realidade social.
8.1. De fato, o Código Civil tratou no Capítulo III, do Livro II, dos bens públicos, sendo aqueles “bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno” (art. 98), classificando-os quanto à destinação ou finalidade em: bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais.
Os bens de uso comum do povo são tidos como aqueles bens que se destinam à utilização da coletividade, em regra, com uso indistinto e sem discriminação, podendo a referida destinação advir da norma ou da própria natureza do bem, tendo o Código Civil citado, como exemplo, os rios, mares, estradas, ruas e praças (art. 99, I). Deve-se observar que, mesmo os referidos bens de uso geral poderão, excepcionalmente, ter a sua utilização regulamentada pelo Poder Público (art. 103).
Já os bens de uso especial são aqueles destinados eminentemente à execução dos serviços públicos, fazendo parte do aparelhamento estatal para alcance de seus fins, “tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias” (CC, art. 99, II), além dos museus, aeroportos, cemitérios, veículos oficiais, dentre outros. A natureza desses bens é mantida mesmo quando utilizados por particulares, notadamente no regime de delegação, quando destinados à prestação dos serviços públicos.
E, na última categoria, há os bens dominicais, que são aqueles pertencentes ao acervo estatal, mas que se encontram desafetados, sem destinação especial e sem finalidade pública, tendo sido definidos pelo Código Civil como aqueles bens “que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades” (art. 98, III), além daqueles que, não dispondo a lei em contrário, pertencem “às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado” (art. 98, parágrafo único). São disponíveis, podendo, por conseguinte, ser alienados (art. 101), sendo exemplos: as terras devolutas, as terras sem destinação pública específica, os prédios públicos desativados, os bens móveis inservíveis e a dívida ativa.
8.2. Nessa ordem de ideias, tendo sempre em mente que a posse deve ser protegida como um fim em si mesma, exercendo o particular o poder fático sobre a res e garantindo sua função social, é que se reconhece, de forma excepcional, a posse pelo particular sobre bem público dominical.
É que “o critério para aferir se há posse ou detenção não é o estrutural e sim o funcional. É a afetação do bem a uma finalidade pública que dirá se pode ou não ser objeto de atos possessórios por um particular. A distinção releva, pois nos bens públicos de uso comum do povo e especiais o possuidor não poderá ajuizar ações possessórias, eis que não pode haver posse individualizada de um ou de outro” (CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. vol. 5. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 137).
Dessarte, com relação aos bens públicos dominicais, justamente por possuírem estatuto semelhante ao dos bens privados, não sendo considerados res extra commercium , penso que o particular poderá manejar interditos possessórios contra terceiros que venham a ameaçar ou violar a sua posse.
Nesse sentido, é a lição de Moreira Alves em sua famosa obra sobre o estudo dogmático da posse:
Portanto, em síntese, das coisas extra commercium , não podem ser objeto de posse as insusceptíveis de apropriação, e, portanto, as res communes omnium – assim o ar, a água corrente, o oceano – enquanto tais, pela impossibilidade de serem apropriáveis no seu todo; se, porém, se destacar delas uma certa porção, que passa a conter-se num dado recipiente, poderá esta ser possuída. Já no tocante às coisas legalmente inalienáveis, que também se incluem na categoria das extra commercium , é preciso distinguir as particulares das públicas: aquelas, quer a inalienabilidade decorra da lei ou de ato jurídico, são susceptíveis de posse; estas o são se dominicais, mas se de uso comum ou de uso especial só o Estado é possuidor delas, podendo o particular ser, apenas, seu detentor, quer em face do Estado quer em face de terceiro, salvo se o Estado assegurar a ele o uso privativo de parcela de um desses bens, caso em que – se não se configurar a hipótese do art. 497, primeira parte, do Código Civil – o particular será possuidor dela, em face do Estado ou de terceiros, enquanto perdurar a permissão ou concessão do uso privativo. (ALVES, José Carlos Moreira. Posse, II, 1. tomo: estudo dogmatico. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 173)
A exegese que reconhece a posse nos bens dominicais deve ser conciliada com a regra que veda o reconhecimento da usucapião nos bens públicos (STF, Súm 340, CF, arts. 183, § 3°; e 192; CC, art. 102), permitindo se concluir que, apenas um dos efeitos jurídicos da posse – a usucapião – é que será limitado, devendo ser mantido, no entanto, a possibilidade de invocação dos interditos possessórios pelo particular.
É o que destaca a doutrina de Ernane Fidélis:
Quanto aos bens dominicais, sem serem de uso público e sem terem destinação especial, como as terras devolutas, por exemplo, mesmo não sendo adquiríveis por usucapião podem, no entanto, ser objeto de posse, já que empecilho algum existe ao possuidor de neles exteriorizar qualquer poder inerente à propriedade, sem afetar interesse público. Para eles não se admite a posse ad usucapionem, mas não impedem os interditos possessórios para manter a situação fática inalterada, de acordo com o poder de fato instalado. (Comentários ao novo Código Civil, vol. XV: da posse. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 32)
Em suma, como exposto, não haverá alteração na titularidade dominial do bem, que continuará nas mãos do Estado, mantendo sua natureza pública. No entanto, na contenda entre particulares, reconhecida no meio social como a manifestação e a exteriorização do poder fático e duradouro sobre a coisa, a relação será eminentemente possessória, e, por conseguinte, nos bens do patrimônio disponível do Estado, despojados de destinação pública, será plenamente possível – ainda que de forma precária -, a proteção possessória pelos ocupantes da terra pública que venham a lhe dar função social.
Com efeito, o ordenamento jurídico protege o estado de fato, a situação daquele que exerce todos ou alguns dos poderes inerentes à propriedade (Ihering), tendo-se como possuidor todo aquele que aparentemente se comporta como dono e realiza atos próprios deste estado de aparência, desde que, por óbvio, não haja exclusão expressa da referida proteção pelo normativo pátrio.
Aliás, no ponto, é ilustrativa a doutrina italiana, especialmente no que toca a segunda parte do art. 1.145 do Código Civil ítalo:
Tuttavia nei rapporti tra privati è concessa l’azione di spoglio [1;168] rispetto ai beni apparteneni al pubblico demanio-permasue e ai beni delle province e dei comuni soggetti a regime proprio del demanio permasue pubblico [822,824] (PROTETTÍ, Ettore. Le azioni possessorie la responsabilita e il procedimento in materia possessoria. Milano: A.. Giuffre, 1995, p. 179)
9. A Terceira Turma parece ter seguido justamente esse entendimento, no julgamento do REsp n. 1.484.304/DF, em 10/03/2016, em que o il. relator, Ministro Moura Ribeiro, destacou:
Ora, aquele que invade terras públicas e nela constrói sua moradia, como é o caso dos autos, jamais exercerá a posse em nome alheio. Não há entre a União e ele uma relação de dependência ou de subordinação. Não há que se falar, portanto, em mera detenção.
O animus domni é evidente. A intenção de quem estabelece sua moradia em terras alheias é de tê-las como suas, embora seja juridicamente infrutífero o animus.
O fato de as terras públicas não serem passíveis de aquisição por usucapião não altera esse quadro. Com frequência, o invasor nem sequer conhece essa característica do imóvel. Sua intenção, como pontuado, é ter a terra para si, embora o obstáculo jurídico intransponível.
Nessa ordem de ideias, forçoso concordar com o Tribunal de origem no sentido de que, ainda que a posse não possa ser oposta ao ente público, senhor da propriedade do bem, ela pode ser oposta contra outros particulares.
Os interditos possessórios são, portanto, adequados à discussão da melhor posse entre particulares, ainda que relativamente a terras públicas.
Conclui-se, portanto, que “a disputa entre particulares, relativa a bem público, também não impede o manejo e utilização dos interditos possessórios, até porque o reconhecimento da natureza pública do bem confere a titularidade dominial ao poder público, mantendo incólume sua posição de titular”; desta feita, “os particulares terão apenas a detenção em relação ao Poder Público, mas como os vícios da posse são relativos, entre os contendores, a disputa será relativa à posse, pois entre ambos não terá cabimento a exceção, por tratar-se de res extra commercium . Este argumento caberá ao ente estatal e não aos particulares” (ARAUJO, Fábio Caldas de. Posse. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 263).
10. Não se pode olvidar, por outro lado, que a ocupação por particular de um bem público abandonado/desafetado – isto é, sem destinação ao uso público em geral ou à uma atividade administrativa -, acaba por conferir justamente a função social da qual o bem está carente em sua essência.
Realmente “se a posse de bens particulares terá função social, necessariamente a posse de bens públicos “é” função social, mesmo quando desafetados. O bem público abandonado trai a sua própria vocação. A pessoa que inicia uma ocupação sobre este bem exerce posse natural e não mera detenção, pois atua em nome próprio. Caso o Estado tencione recuperar o poder fático sobre o bem, será pelo devido processo legal” (CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Ob.cit., p. 138).
Ora, como sabido, Miguel Reale apontou, no tocante ao novo Código Civil, as diretrizes da “socialidade”, trazendo cunho de humanização do Direito e de vivência social; da “eticidade”, na busca de solução mais justa e equitativa; e da “operabilidade”, alcançando o Direito em sua concretude e, quanto à posse, já reconhecia que:
Em virtude do princípio da socialidade, surgiu também um novo conceito de posse, a posse-trabalho, ou posse pro labore, em virtude da qual o prazo de usucapião de um imóvel é reduzido, conforme o caso, se os possuidores nele houverem estabelecido a sua morada, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Por outro lado, foi revisto e atualizado o antigo conceito de posse, em consonância com os fins sociais da propriedade.
[…]
Mais do que nunca se impõe, por conseguinte, a disciplina da propriedade em razão de sua já apontada ‘função social’, o que, como explico na Exposição de Motivos, repercute em vários preceitos, no tocante, por exemplo, à posse, cuja apreciação deixa de ser feita segundo os critérios formalistas da tradição romanista, a qual não distingue a posse simples, ou improdutiva, da posse acompanhada de obras e serviços realizados nos bens possuídos, o que exige seja dada a atenção devida aos valores do trabalho. Esse novo conceito de posse é, fora de dúvida, uma das contribuições originais do Direito pátrio, já consagrado em nossa legislação agrária sob a denominação usual, embora imprópria, de posse pro labore. […]
De igual modo é urgente encontrar uma solução jurídica para reiterados dramas sócio-econômicos conseqüentes de conflitos entre os proprietários de terras, vencedores em ações reivindicatórias após dezenas de anos de demanda, e aqueles que, de boa-fé, nelas edificaram, entrementes, sua morada realizaram benfeitorias de irrecusável alcance social.
(REALE, Miguel. O projeto de código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. São Paulo: Saraiva, 1999, p.7 e 33)
Nessa ordem de ideias, para fins de reconhecimento da posse, também é necessário a busca pelo atendimento de sua função social, tendo como escopo a atual codificação e seu espírito de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, em alinhamento com a Carta da República, que trouxe, como pilar, a dignidade da pessoa humana, assegurando a tutela à moradia, ao trabalho, ao aproveitamento do solo e ao mínimo existencial; sendo a posse, por isso, uma extensão dos bens da personalidade.
De fato, a construção do conceito de posse deve levar em conta o direito social primário à moradia e o acesso aos bens vitais mínimos, aptos a conferir dignidade à pessoa humana em um plano substancial (art. 1°, III, CF), sempre em resguardo à pessoa e à entidade familiar.
Nesse passo, destaca a doutrina especializada, para fins de reconhecimento de posse, no tocante à ocupação de terras públicas por particulares:
[…] se o bem está desafetado a um fim de interesse público, a funcionalização dos institutos da posse e da propriedade recomendam que se admita o exercício da posse por parte da quem confere ao bem a indispensável função social, conferindo efetividade ao inciso XXIII do artigo 5° e inciso III do artigo 170, ambos da Carta Magna. Não por outro motivo, o Código Civil coloca o bem dominical como alienável, indicando, portanto, que o mesmo não é extra commercium e sim in commercium .
A proibição constitucional (arts. 183, § 3°, e 191, parágrafo único) e legal (art. 102, CC) de usucapião de bem público não indica a impossibilidade de posse, posto que, como visto, os institutos da posse e da propriedade não se confundem. (MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das coisas. v.5. São Paulo: Atlas, 2015, p. 55-56)
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Se o poder público não atribui à coisa da sua titularidade uma funcionalidade social, é legítimo reconhecer-se a realização dessa função pelos particulares.
Interessante notar que a Corte Européia dos Direitos do Homem, em decisão de 30 de novembro de 2004, reconheceu que o fato de se ter construído sobre terreno público uma moradia, durante vários anos, confere direito de propriedade sobre a construção em função da satisfação de uma necessidade humana fundamental. (MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à moradia. São Paulo : Atlas, 2011, p. 181)
Realmente, à luz do texto constitucional e da inteligência do novo Código Civil, a função social é base normativa para a solução dos conflitos atinentes à posse, dando-se efetividade ao bem comum, com escopo nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Trata-se de princípio implícito no CC/2002, advindo da interpretação dos arts. 1.228, §§ 4° e 5°, e parágrafo único dos arts. 1.238 e 1.242, além de que, tendo a propriedade uma função social reconhecida pela Constituição Federal, deve-se conferir o mesmo entendimento em relação à posse, uma vez que é por meio desta que a função social daquela se cumpre.
Nessa toada, assenta a doutrina que:
Evidentemente que a função social da posse não se evidencia apenas em torno dos conflitos envolvendo a situação proprietária. A função social da posse, como princípio constitucional positivado e com aplicação cogente às relações interprivadas, deve ser a base normativa para a solução dos conflitos entre possuidores que detenham ou não ‘justo título’, o que relativiza a formalidade ainda exigida através do art. 507 do Código Civil. Assim sendo, o julgador não deve restringir-se apenas ao exame formal de eventual título nos conflitos possessórios, mas adentrar no conteúdo da posse, ou seja, perquerir sobre a exteriorização de sua função social.
[…]
Através destes efeitos, salientamos que a função social da posse não determina apenas a juridicização de um fato social – do fato da posse em si -, tampouco um efeito da posse, mas exigência de sistematização das situações patrimoniais de acordo com a nova ordem constitucional, no âmbito de uma Constituição normativa que pretende seja real e efetiva, muito menos condicionada aos fatores do poder e a um destino de simples folha de papel a que alude Lassale, do que em condicionar e realizar sua força no sentido do bem comum, tendo por base o princípio da igualdade e dignidade da pessoa humana”
(ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira de. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 210 e 221)
Com efeito, a posse deve ser analisada de forma autônoma e independente em relação à propriedade, como fenômeno de relevante densidade social, em que se verifica o poder fático de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida e de acordo com os valores sociais nela impregnados, devendo expressar o aproveitamento concreto e efetivo do bem para o alcance de interesse existencial, tendo como vetor de ponderação a dignidade da pessoa humana, sendo o acesso à posse um instrumento de redução de desigualdades sociais e justiça distributiva.
A propósito, salienta Gustavo Tepedino que:
Além de aferir quem possui título hábil para transferir a propriedade, o intérprete deverá verificar o atendimento pelo possuidor da função social da posse, consubstanciada na utilização racional e adequada do solo, no direito ao trabalho e à moradia, que correspondem, em última análise, à concretização da cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana, assegurada em sede constitucional. Na perspectiva civil-constitucional, a posse com justo título nem sempre será a melhor posse. Começa a ser superada a envelhecida formulação de Jhering sobre a posse, concebida como a guarda avançada da propriedade, ‘com a sustentação segundo a qual o largo alcance da função social não é congruente com o deferimento da proteção possessória ao titular do domínio cuja propriedade não cumpra integralmente sua função social’. Assim, o justo título passa a ser critério subsidiário na solução de conflitos possessórios, na ausência de prova da posse e de sua função social. E o mesmo se pode afirmar para os critérios da antiguidade e atualidade da posse.
(TEPEDINO, Gustavo. Comentário ao código civil: direito das coisas. Antonio Junqueira de Azevedo Coord. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 151-152)
Verifica-se, portanto, que a função social advém de limitações e finalidades decorrentes do interesse público, conferindo o mesmo conceito dinâmico à posse e à propriedade, como forma de uma reação anti-individualista.
Com efeito, a tessitura da função social, independentemente se na propriedade ou na posse, está na atividade exercida pelo titular da relação sobre a coisa à sua disposição. Ela “não transige, não compactua com a inércia do titular. Há que desenvolver uma conduta que atende ao mesmo tempo à destinação econômica e à destinação social do bem” (TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 308).
11. A constatação desse evento – posse de bem público por particular, somada à função social – pode ser percebida pelo próprio Estado na edição de diversos normativos relacionados à regularização fundiária e às concessões especiais para fins de moradia, em que se acabou reconhecendo, expressamente, a necessidade de posse do bem público (com função social) como requisito para o direito subjetivo à concessão do benefício:
Lei n° 6383/1976
Art. 29 – O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse de área contínua até 100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintes requisitos:
I – não seja proprietário de imóvel rural;
II – comprove a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano.
§ 1º A regularização da ocupação de que trata este artigo consistirá no fornecimento de uma Licença de Ocupação, pelo prazo mínimo de mais quatro anos, findo o qual o ocupante terá a preferência para aquisição do lote pelo valor mínimo estabelecido em planilha referencial de preços, a ser periodicamente atualizada pelo INCRA, utilizando-se dos critérios relativos à ancianidade da ocupação, às diversificações das regiões em que se situar a respectiva ocupação e à dimensão de área.
§ 2º – Aos portadores de Licenças de Ocupação, concedidas na forma da legislação anterior, será assegurada a preferência para aquisição de área até 100 (cem) hectares, nas condições do parágrafo anterior, e, o que exceder esse limite, pelo valor atual da terra nua.
§ 3º – A Licença de Ocupação será intransferível inter vivos e inegociável, não podendo ser objeto de penhora e arresto.
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Medida Provisória n° 2220/2001
Art. 1° Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
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Lei n° 11.977/2009
Art. 54. O projeto de regularização fundiária de interesse social deverá considerar as características da ocupação e da área ocupada para definir parâmetros urbanísticos e ambientais específicos, além de identificar os lotes, as vias de circulação e as áreas destinadas a uso público.
[…]
Art. 59. A legitimação de posse devidamente registrada constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia. (Redação dada pela Lei nº 12.424, de 2011)
§ 1° A legitimação de posse será concedida aos moradores cadastrados pelo poder público, desde que:
I – não sejam concessionários, foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural;
II – não sejam beneficiários de legitimação de posse concedida anteriormente.
§ 2° A legitimação de posse também será concedida ao coproprietário da gleba, titular de cotas ou frações ideais, devidamente cadastrado pelo poder público, desde que exerça seu direito de propriedade em um lote individualizado e identificado no parcelamento registrado.
Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.
Também é o que adverte a lição dos administrativistas:
Legitimação de posse é o instituto através do qual o Poder Público, reconhecendo a posse legítima do interessado e a observância dos requisitos fixados em lei, transfere a ele a propriedade de área integrante do patrimônio público.
A expressão legitimação de posse é imprópria. O Poder Público não se limita a julgar legítima a posse do interessado. Reconhecendo a posse, e presentes os requisitos legais, procede à regularização fundiária , legitimando a ocupação por um período e, subsequentemente, efetivando a alienação com vistas à transferência do domínio para o possuidor. Por isso, o instituto retrata uma das condições para a alienação de bens públicos.
[…]
A legitimação de posse tem caráter eminentemente social e visa a atender as pessoas que exercem atividade agrícola em terras públicas, não com fins especulativos, mas sim a título de moradia e de trabalho. Assim, satisfeitas as condições legais, e decorrido o prazo da licença de ocupação, o interessado recebe o título de domínio. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 1186)
12. Por fim, apenas para constar, destaco que, em recente julgado, a Terceira Turma, apesar de repristinar o entendimento de que não caberia o reconhecimento da posse nos bens dominicais, avançou para reconhecer a possibilidade de utilização de interditos possessórios por particulares em bens de uso comum do povo.
O julgado foi assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS COISAS. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POSSESSÓRIA. ESBULHO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. REGULARIDADE DA REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. HARMONIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. PRESENÇA DOS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA LIMINAR. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. POSSIBILIDADE DO PEDIDO E LEGITIMIDADE AD CAUSAM . CONDIÇÕES DA AÇÃO. TEORIA DA ASSERÇÃO. POSSE DE BEM PÚBLICO DE USO COMUM. DESPROVIMENTO.
1. Ação ajuizada em 20/10/2010. Recurso especial interposto em 09/05/2011. Conclusão ao gabinete em 25/08/2016.
2. Trata-se de afirmar se i) teria ocorrido negativa de prestação jurisdicional; ii) a representação processual das recorridas estaria regular e se competiria ao recorrente a prova da irregularidade; iii) particulares podem requerer a proteção possessória de bens públicos de uso comum; e iv) estariam presentes os requisitos necessários ao deferimento da liminar de reintegração de posse.
3. Ausentes os vícios do art. 535 do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração.
4. O reexame de fatos e provas em recurso especial é inadmissível.
5. As condições da ação devem ser averiguadas segundo a teoria da asserção, sendo definidas da narrativa formulada inicial e não da análise do mérito da demanda.
6. O Código Civil de 2002 adotou o conceito de posse de Ihering, segundo o qual a posse e a detenção distinguem-se em razão da proteção jurídica conferida à primeira e expressamente excluída para a segunda.
7. Diferentemente do que ocorre com a situação de fato existente sobre bens públicos dominicais – sobre os quais o exercício de determinados poderes ocorre a pretexto de mera detenção -, é possível a posse de particulares sobre bens públicos de uso comum, a qual, inclusive, é exercida coletivamente, como composse.
8. Estando presentes a possibilidade de configuração de posse sobre bens públicos de uso comum e a possibilidade de as autoras serem titulares desse direito, deve ser reconhecido o preenchimento das condições da ação.
9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido.
(REsp 1582176/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/09/2016, DJe 30/09/2016)
Nesse sentido, também era o entendimento do STF, nos idos de sua competência originária:
1) PELA FUNDAMENTAÇÃO ‘EX ABUNDANTIA’, A SENTENÇA NÃO DECIDE ‘ULTRA PETITA’.
2) O COMPOSSUIDOR, VERIFICADOS OS PRESSUPOSTOS LEGAIS, TEM DIREITO À PROTEÇÃO POSSESSÓRIA.
3) REFERÊNCIA À PROTEÇÃO POSSESSORIA DE BEM PÚBLICO DE USO COMUM. (AI 33270, Relator(a): Min. VICTOR NUNES, Segunda Turma, julgado em 06/11/1964, DJ 03-12-1964)
No voto, o relator ressaltou que:
Ainda que o bem seja bem público de uso comum de todos, há opiniões autorizadas que admitem a proteção possessória requerida por particular contra particular, que esteja obstando o uso comum. Reporto-me, a êsse respeito, às opiniões citadas em trabalho anterior (“Composse de Bens Públicos de Uso Comum,” R.D.A. 10/106)
13. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É o voto.
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. POSSE. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. BEM PÚBLICO DOMINICAL. LITÍGIO ENTRE PARTICULARES. INTERDITO POSSESSÓRIO. POSSIBILIDADE. FUNÇÃO SOCIAL. OCORRÊNCIA.
1. Na ocupação de bem público, duas situações devem ter tratamentos distintos: i) aquela em que o particular invade imóvel público e almeja proteção possessória ou indenização/retenção em face do ente estatal e ii) as contendas possessórias entre particulares no tocante a imóvel situado em terras públicas.
2. A posse deve ser protegida como um fim em si mesma, exercendo o particular o poder fático sobre a res e garantindo sua função social, sendo que o critério para aferir se há posse ou detenção não é o estrutural e sim o funcional. É a afetação do bem a uma finalidade pública que dirá se pode ou não ser objeto de atos possessórias por um particular.
3. A jurisprudência do STJ é sedimentada no sentido de que o particular tem apenas detenção em relação ao Poder Público, não se cogitando de proteção possessória.
4. É possível o manejo de interditos possessórios em litígio entre particulares sobre bem público dominical, pois entre ambos a disputa será relativa à posse.
5. À luz do texto constitucional e da inteligência do novo Código Civil, a função social é base normativa para a solução dos conflitos atinentes à posse, dando-se efetividade ao bem comum, com escopo nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
6. Nos bens do patrimônio disponível do Estado (dominicais), despojados de destinação pública, permite-se a proteção possessória pelos ocupantes da terra pública que venham a lhe dar função social.
7. A ocupação por particular de um bem público abandonado/desafetado – isto é, sem destinação ao uso público em geral ou a uma atividade administrativa -, confere justamente a função social da qual o bem está carente em sua essência.
8. A exegese que reconhece a posse nos bens dominicais deve ser conciliada com a regra que veda o reconhecimento da usucapião nos bens públicos (STF, Súm 340; CF, arts. 183, § 3°; e 192; CC, art. 102); um dos efeitos jurídicos da posse – a usucapião – será limitado, devendo ser mantido, no entanto, a possibilidade de invocação dos interditos possessórios pelo particular.
9. Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti (Presidente), Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 18 de outubro de 2016(data do julgamento)
Ministro Luis Felipe Salomão
Relator