por José Carlos Vaz.
A Cédula de Produto Rural (CPR) chega aos 30 anos, pujante (em segurança jurídica) e simpática (por sua facilidade de compreensão e uso).
Não foi a única tentativa institucional para aproximar o produtor rural dos investidores, mas a mais bem sucedida, pelo seu caráter inovador e indutor de inovação.
Essa capacidade de inovação decorreu da feliz conjugação de fatores como: uma incubadora (o Banco do Brasil) que não se voltou contra a cria e destacou recursos e sacrificou receitas; um governo de 2 mandatos coordenado e com força política; técnicos capacitados (“Bob” Machado, o criador, e Ricardo Conceição, o consolidador, por exemplo); apoio da BM&F.
Mas a Cédula é por vezes objeto de um pensar “metonímeo”, em que se confunde o instrumento CPR (conteúdo) com um sistema de segurança jurídica para a circulação de títulos (continente), algo de que o Brasil ainda carece.
A redução da taxa de juros e o aumento da renda dos produtores na pandemia levou a um boom na emissão de títulos do agronegócio. Contudo, houve uma “vulgarização” dos direitos creditórios, utilizados em parte das captações apenas para cumprir formalidade de lastro, e não como meio de transferência de risco e alavancagem da captação de recursos.
Existem legislações confusas, quiçá conflitantes, quanto à execução de hipoteca rural/alienação fiduciária, penhor rural/alienação fiduciária, registro de garantias e de instrumentos, créditos preferenciais, recuperação judicial, caso fortuito/força maior. É preciso unificar e padronizar.
No futuro, em algum momento, ocorrerá a desbancarização do crédito rural, sendo a política de renda agrícola operada, quando necessária, mediante seguro rural e privilégios fiscais para a aquisição, pelo mercado, dos direitos creditórios (cuja originação pelos produtores dependerá de certificação de boas práticas produtivas e de classificação de risco do empreendimento).
Trazer fintechs, traders, cooperativas de crédito para financiar não melhorará o volume e o custo do dinheiro para o campo se não houver redução da intermediação entre o produtor e o investidor, em especial os de menor porte (de varejo), os institucionais (fundos de aposentadoria, por exemplo) e os de fora do País.
Para ter acesso a mais recursos, principalmente externos, em boas condições, mais do que uma dispensa de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), o setor rural precisará gerar percepção de risco aceitável para os investidores, o que exige, da parte dos produtores, disclosure (transparência), accountability(comprometimento e responsabilização) e compliance (padronização e conformidade).
E o Estado deverá garantir segurança jurídica nos negócios e atuar contra concentrações de poder de mercado.
Nesse contexto, aumenta a necessidade de reversão da “lobotomia” que se verifica no crédito ao agronegócio, onde o “hemisfério cerebral” do crédito rural bancário desconhece os contratos do “hemisfério” do crédito rural não bancário, e vice-versa, nada obstante estejam unidos pelo córtex da dependência do resultado da atividade produtiva rural e do compartilhamento de garantias.
Essa reversão, e o equacionamento de outras das questões mencionadas neste texto, poderá ser buscada mediante ajustes legislativos e regulatórios na geração e custódia de qualquer direito creditório (contratos bancários ou não) do agronegócio, como, por exemplo:
a) eficácia executiva condicionada ao registro dos direitos creditórios em sistema não só autorizado mas também consolidado pelo Banco Central, e prioridade excutiva conforme a ordem de registro. Permitirá a implementação de um “inventário” de responsabilidades e garantias vinculadas aos empreendimentos produtivos rurais, e o fim dos “contratos de gaveta” dos produtores rurais.
b) impedimento do produtor ou seu imóvel para operar no sistema sempre que o poder público fizer o registro ali de alguma obrigação em aberto (fiscal, trabalhista, previdenciária, ambiental) junto à União, estados, DF e municípios.
c) implementação de modelo formal e simplificado, não obrigatório, para a segregação patrimonial e financeira da atividade empresarial produtiva e da pessoa natural do produtor (talvez mediante uso do Patrimônio Rural em Afetação – PRA, que seria constituído em cartório e “depositado” nos sistemas autorizados pelo BACEN).
d) melhor definição e delimitação da atuação no crédito no agronegócio de agentes registradores, custodiantes, fiscalizadores, fiduciários, certificadores (de garantia e similares, de performance, etc.), com estabelecimento de segregações de funções e de restrições à sua participação no resultado da intermediação dos negócios de crédito vinculado à atividade produtiva rural.