Direito Agrário

Cobrança do ITR pelos Municípios

Direito Agrário - Foto: Guilherme Medeiros

por Clairton Kubaszwski Gama.

 

A possibilidade de delegação da fiscalização e cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR) para os municípios (conforme prevê o artigo 153, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição Federal) tem ocupado lugar de destaque na pauta do agronegócio. E este é um movimento que tende mesmo a ganhar força, uma vez que, como contrapartida por realizar a cobrança do imposto, os municípios passam a ficar com 100% do valor arrecadado (enquanto que normalmente, sendo a cobrança realizada pela Receita Federal, ficariam com apenas 50%).

Por vezes, até mesmo impulsionados pela busca de mais recursos, muitos municípios adotam como primeira atitude no exercício da fiscalização do imposto uma ampla revisão no valor da terra nua dos imóveis rurais situados em seu território.

O valor da terra nua (VTN) é um dos elementos necessários para determinação da base de cálculo do ITR. Sua apuração ocorre conforme o previsto no artigo 10, parágrafo 1º, inciso I, da Lei nº 9.393/1996, que assim prevê:

Art. 10 […]

§ 1º. Para os efeitos de apuração do ITR, considerar-se-á:

I – VTN, o valor do imóvel, excluídos os valores relativos a:

a) construções, instalações e benfeitorias;

b) culturas permanentes e temporárias;

c) pastagens cultivadas e melhoradas;

d) florestas plantadas;

O inciso II do referido dispositivo legal, por sua vez, ocupa-se de especificar como será apurado outro elemento necessário para determinação da base de cálculo do imposto, a área tributável:

II – área tributável, a área total do imóvel, menos as áreas:

a) de preservação permanente e de reserva legal, previstas na Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012;

b) de interesse ecológico para a proteção dos ecossistemas, assim declaradas mediante ato do órgão competente, federal ou estadual, e que ampliem as restrições de uso previstas na alínea anterior;

c) comprovadamente imprestáveis para qualquer exploração agrícola, pecuária, granjeira, aqüícola ou florestal, declaradas de interesse ecológico mediante ato do órgão competente, federal ou estadual;

d) sob regime de servidão ambiental;

e) cobertas por florestas nativas, primárias ou secundárias em estágio médio ou avançado de regeneração;

f) alagadas para fins de constituição de reservatório de usinas hidrelétricas autorizada pelo poder público.

E o inciso III nos dá a equação que irá, então, determinar a base de cálculo, ou valor da terra nua tributável (VTNt), na expressão utilizada pela Lei:

III – VTNt, o valor da terra nua tributável, obtido pela multiplicação do VTN pelo quociente entre a área tributável e a área total;

Portanto, para determinar a base de cálculo do ITR é preciso, primeiro, apurar o valor da terra nua (VTN); paralelamente, é preciso determinar a área tributável; e, por fim, o VTNt será obtido pela multiplicação do valor da terra nua pelo quociente entre a área tributável e a área total do imóvel.

Registra-se, ainda, que no Decreto nº 4.382/2002, que regulamenta o ITR, bem como na Instrução Normativa nº 256/2002 da Secretaria da Receita Federal, encontramos alguns esclarecimentos complementares quanto a forma de apuração do valor da terra nua e área tributável.

Ocorre que, não raras vezes, esta revisão do VTN é realizada pelo município sem a observância das exigências legais e infralegais aplicáveis à questão. Na prática o que se tem verificado com certa frequência é que os municípios tão simplesmente passam a equiparar o valor da terra nua ao valor de mercado dos imóveis rurais situados em seu território.

Mas o VTN e o valor de mercado são completamente distintos e não podem ser confundidos, ainda mais quando isto implica em majoração de tributo. O valor de mercado de um imóvel rural é, sem dúvida, muito superior ao valor da terra nua deste mesmo imóvel, pois este considera tão somente o valor fundiário, enquanto que aquele leva em consideração diversos outros aspectos de caráter mercadológico e negocial. Portanto, equiparar VTN e valor de mercado é majorar o ITR de forma ilegal e inconstitucional.

Ilegal porque despreza todo o procedimento previsto na Lei nº 9.393/1996 para determinação da base de cálculo e inconstitucional porque ofende a materialidade do tributo, prevista no inciso VI do artigo 153 da Constituição.

Com efeito, a previsão constitucional é de um imposto que incida tão somente sobre a propriedade territorial (e não territorial e predial, por exemplo, como acontece com o IPTU). Justamente por isso é que a Lei nº 9.393/1996 teve o cuidado de prever um procedimento para determinação da base de cálculo que apurasse exclusivamente o valor da terra nua (tributável).

Resta claro, portanto, que a base de cálculo do ITR não se confunde com o valor de mercado ou com o valor venal do imóvel. O valor da terra nua tributável (base de cálculo do ITR) é elemento a ser apurado conforme as determinações da legislação de regência da matéria acima mencionadas.

Importante observar que, embora não se confunda como já exaustivamente dito, o valor do imóvel é um dos elementos necessários para a determinação do VTNt (vide inciso I do parágrafo 1º do artigo 10 da Lei nº 9.393/1996, acima transcrito). Contudo, o valor do imóvel é também um dado técnico, que deve ser apurado em conformidade com as regras aplicáveis.

Sobre esse aspecto, deve-se atentar especialmente para o que prevê a NBR nº 14.653 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que versa sobre os procedimentos gerais para a avaliação de bens e, em sua parte 3, trata especificamente dos imóveis rurais. Dentre as diretrizes determinadas pela referida norma técnica, consta que a apuração do valor do imóvel partirá de uma amostra representativa de dados de mercado de imóveis com características, tanto quanto possível, semelhantes às do avaliando, obtida por meio do levantamento de dados e informações confiáveis preferencialmente a respeito de negociações realizadas e ofertas contemporâneas à data de referência da avaliação.

Quer dizer, ainda que o VTNt não se confunda com o valor de mercado do imóvel, este é indispensável e configura o ponto de partida para determinação daquele. Além do que, a apuração do VTNt é de competência técnica, caracterizando atividade a ser realizada por profissional habilitado, no caso, por engenheiro agrônomo, em conformidade com o disposto no art. 7º, alínea “c”, da Lei nº 5.194/1966, e na Resolução nº 218/1973 do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA).

Podemos concluir, assim, que o valor da terra nua não pode ser modificado de forma livre, a atender os interesses do fisco (seja municipal ou federal). Simplesmente equiparar o valor da terra nua ao valor de mercado do imóvel rural viola todo o conjunto de normas (jurídicas e técnicas) que regem a matéria e acaba por gerar uma expressiva e indevida majoração do valor a ser pago a título de imposto.

Cabe ao contribuinte ficar atento a eventual modificação do VTN realizado pelo município que tenha celebrado convênio para fins de cobrança do ITR. Verificada a ocorrência dessa situação, é preciso que se busque conhecimento acerca de quais foram os critérios adotados pelo município para determinação do novo valor de terra nua. Uma vez constatada divergência quanto ao procedimento determinado pela Lei nº 9.393/1996, pelo Decreto nº 4.382/2002, pela Instrução Normativa nº 256/2002 e pela NBR nº 14.653 (ABNT), o contribuinte poderá se contrapor.

Importante lembrar que, tanto no âmbito administrativo quanto judicial, a impugnação do valor apurado pelo município precisa ser acompanhada por um laudo técnico, elaborado em atenção às normas de regência e por profissional competente e habilitado para tanto. Quer dizer, esta impugnação apresenta-se sob a forma de um trabalho multidisciplinar, que exige a demonstração do embasamento jurídico e legal, mas que também depende de sólido trabalho técnico, visando comprovar o valor real da terra nua do imóvel.

Clairton Kubaszwski Gama – Mestrando em Direito pela UFRGS. Pós-Graduado em Direito Tributário pelo IBET. Graduado em Direito pela PUCRS. Advogado, sócio do escritório Kubaszwski Gama Advogados Associados. Professor de Direito Tributário. Membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU. Contato: clairton@gamaadvogados.adv.br

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