Direito Agrário

A liberdade econômica do produtor rural

Direito Agrário

por Renato Buranello.

 

A agricultura, tal como a conhecemos hoje, é fruto de um longo período de evolução, de capacidades, tecnologias e relação de instituições públicas e privadas. Até os anos de 1970, o crescimento agrícola era baseado na expansão de áreas, com baixos índices de produtividade e exploração econômica isolada de propriedades rurais. Hoje, a atividade rural é tomada como parte de um amplo sistema de relações produtivas, tecnológicas e mercadológicas interdependentes. Com isso, o país é, atualmente, um dos maiores produtores mundiais de alimentos, fibras e energias renováveis.

Entende-se que uma Cadeia Agroindustrial (CAI) é composta por uma rede de contratos em distintos níveis de coordenação (Davis e Goldberg, 1957), que compreende os segmentos antes, dentro e depois da porteira da fazenda, todos envolvidos na produção, transformação, comercialização e logística de um produto agrícola específico e seus derivados. Investimentos em ciência e tecnologia e a presença de produtores dinâmicos em um ambiente competitivo mudaram uma antiga realidade, e os estabelecimentos agrícolas passaram a ser analisados como organizações produtivas no exercício da atividade rural.

A segurança jurídica encontra aqui especial relevo, pois tem notável influência no investimento e desenvolvimento econômico do setor e sabe-se que os arranjos institucionais não são neutros em relação as políticas públicas. Dentro da política de crédito rural, podem estar combinados vários mecanismos de incentivos que têm como objetivos principais aumentar a participação das tradings e do mercado financeiro no crédito privado ao agronegócio. Nesse contexto, na Lei de Recuperação Judicial e Falência (LRF – Lei n. 11.101/2005), constou do parecer n. 534/2004 do anteprojeto que “deve-se conferir às normas relativas à falência, à recuperação judicial e à recuperação extrajudicial tanta clareza e precisão quanto possível, para evitar que múltiplas possibilidades de interpretação tragam insegurança jurídica aos institutos e, assim, fique prejudicado o planejamento das atividades das empresas e de suas contrapartes”. Ainda, no artigo 47 da lei, foi erigida a manutenção dos interesses dos credores no estimulo à atividade econômica.

No Judiciário, chegou ao STJ matéria que põe à prova os fundamentos descritos: a recuperação judicial do produtor rural. Ainda com base em decisões monocráticas e recentes enunciados da III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, realizada nos dias 6 e 7 de junho de 2019, foram aprovados os enunciados 97 e 96 que dispõem de forma combinada que o produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de 02 (dois) anos no Registro Público de Empresas Mercantis e que tal favor legal sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição. O entendimento em questão tem ganhado força nos Tribunais e já causa grave instabilidade no mercado.

No âmbito legislativo, tramitam nas duas casas projetos de Lei sobre a recuperação judicial do produtor rural, o PLS n. 624/2015, o PL n. 6279/2013 e o PL n. 7158/2017. Não vemos como afastar da pauta regulatória a discussão da legitimidade do produtor rural ter previsto um processo de recuperação ou insolvência, mas em que condições e impactos? A Medida Provisória n. 881/2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias ao livre mercado, prevê a análise de impacto regulatório às propostas de edição e de alteração de normas de interesse geral de agentes econômicos para verificar a razoabilidade do seu efeito econômico (Nos EUA a obrigação de examinar custos e benefícios das medidas regulatórias vigora deste 1981 com a edição da Executive Order n. 12.291). A vantagem da revisão do estoque normativo está no fato que as iniciativas regulatórias podem ser examinadas com base em dados mais confiáveis e objetivos, e não apenas com base em seus efeitos esperados.

Também, ocorre que, dentro e fora do sistema financeiro, para as instituições financeiras e tradings, há regras operacionais e sistemas de avaliação de risco de crédito que impõem parâmetros para a estipulação de ratings, precificando o custo das linhas de financiamento, seus prazos e garantias. Mas como a possibilidade de a pessoa física lançar mão do favor legal não fazia parte da expectativa do credor, as recentes decisões favoráveis aos produtores fazem surgir clara ruptura das bases do negócio jurídico original, não consideradas quando da contratação, o que gera insegurança jurídica, elemento que, dentre outros reflexos, tende a encarecer o crédito e diminuir seu acesso ao produtor.

A natureza das instituições, que caracterizam um sistema de crédito, sustenta-se nas relações econômicas entre os agentes, nas políticas públicas de fomento à agricultura e nos entendimentos do Poder Judiciário sobre os direitos dos credores. Assim, os governos instituem normas que regulam o sistema agrícola, enquanto o crédito e os agentes da cadeia agroindustrial tratam de estabelecer modos de governança que minimizem os custos de transação e que confortem um horizonte de expectativa, de previsibilidade e de estabilidade das relações. Após mais de catorze anos de vigência da LRF e baixos índices de recuperação no setor é esperado um exame mais profundo de seus efeitos e impactos sobre os custos de transação ao agronegócio brasileiro.

Renato Buranello
Doutor em Direito Comercial pela PUC-SP. Coordenador do Curso de Direito do Agronegócio do Insper. Membro da Câmara de Crédito, Comercialização e Seguros do Ministério da Agricultura (MAPA). Sócio do VBSO Advogados.