por Ben Hur Carvalho Cabrera Mano Filho.
A cada ano, o mês de fevereiro é marcado pela aceleração da colheita da safra de verão nas principais regiões agrícolas do Brasil. Tal período coincide com os vencimentos dos contratos de compra e venda futura de produtos agrícolas, que são usualmente firmados entre produtores rurais e tradings previamente à semeadura da safra e liquidados à época da colheita.
Embora o último ano-safra tenha sido amplamente favorável à produção agrícola nacional[1] – em particular em vista das condições climáticas razoáveis, desvalorização da moeda nacional e valorização das cotações internacionais das commodities agrícolas – tem surgido uma certa movimentação de uma minoria de produtores rurais que buscam a quebra ou revisão de contratos de compra e venda futura firmados no decorrer de 2020.
Trata-se de situação inusitada, porquanto as tentativas de quebras de contratos sejam geralmente típicas de períodos de crise no setor, ou seja, cenário diametralmente oposto ao que se observa no mercado agrícola nacional.
Vale a ressalva de que tais iniciativas de quebra de contratos não se configuram como demanda generalizada do setor, mas apenas e tão somente de uma minoria que busca se locupletar do descumprimento das regras do jogo, conforme passamos a demonstrar neste artigo.
Para que se compreenda a questão, vale uma breve descrição da prática de mercado: no início de cada ano-safra, o produtor se depara com duas variáveis essenciais à condução e ao planejamento de sua atividade, quais sejam, os custos de plantio e condução da nova safra vis-à-vis a expectativa futura de receita (preço da mercadoria por ocasião de sua venda).
Diante de tais fatores, o produtor planeja a semeadura da safra, direcionando seus recursos à aquisição de insumos (sementes, fertilizantes, agroquímicos, combustíveis, entre outros), ao preparo do solo e aos investimentos em maquinário, serviços e tecnologias. No primeiro momento, portanto, o produtor incorrerá em custos, sem que lhe seja assegurado o preço de venda de sua mercadoria.
Naturalmente, entre o período de planejamento e a efetiva colheita dos produtos agrícolas, os preços restam sujeitos à oscilação de mercado. Como se sabe, a formação de preços é determinada basicamente pela oferta e demanda, que na maior parte das commodities agrícolas não se restringe ao mercado interno. Assim, por exemplo, os preços costumam variar de acordo com os estoques existentes, a demanda nos mercados consumidores, a expectativa de semeadura no Brasil e nos demais países produtores, aos aspectos climáticos que costumam impactar a produção (positivamente ou negativamente) ao longo do ano-safra, entre tantos outros fatores.
Logo, retomando-se o exemplo do produtor rural que incorrerá imediatamente em custos para a semeadura, condução e colheita de sua safra, percebe-se um relevantíssimo elemento de preocupação, qual seja: o fato de que se incorre em custos, sem que se saiba ao certo qual será o preço de venda da mercadoria colhida.
Obviamente, não houvesse um mecanismo jurídico a assegurar o preço futuro de comercialização da safra, é certo que o produtor rural (sendo um ser racional como qualquer outro) seria demovido da ideia de incremento e investimento em sua produção, dada a necessária cautela diante do risco de perda de patrimônio.
A fim de superar tal risco e permitir, portanto, a segurança na semeadura da safra e o incremento da produção agrícola, é que são firmados os contratos de compra e venda futura de safra, por meio dos quais o produtor essencialmente fixa o preço que lhe será pago por ocasião da colheita e entrega da produção ao comprador. Ditas transações podem ser firmadas por diversos meios e modalidades, por exemplo: (i) podem comportar a antecipação de recursos ou insumos (barter) pelo comprador ao produtor; (ii) podem não conter qualquer antecipação de preço ou insumos, prestando-se apenas para assegurar o preço ao produtor e a entrega da mercadoria ao comprador; e (iii) podem ser firmadas no âmbito do mercado de bolsa, em contratos de liquidação financeira (contratos futuros e derivativos).
Seja qual for o meio eleito pelo produtor, o fato é que a fixação de preço futuro é um elemento essencial e verdadeira mola propulsora da agricultura moderna, porquanto se preste a dirimir o maior dos riscos gerenciais enfrentados pelo agricultor a cada ano-safra, qual seja: a previsibilidade da receita que será apurada com a venda de sua produção e, portanto, a cobertura de seus custos.
O exemplo acima traduz em termos práticos a importância do que no Direito se costuma denominar como o princípio da força obrigatória dos contratos (em latim, pacta sunt servanda). De acordo com Orlando Gomes[2], tal princípio configura a “pedra angular da segurança do comércio jurídico” e faz lei entre os contratantes. Trata-se de um entre os chamados “princípios clássicos” do Direito das obrigações, ao lado da autonomia da vontade e da relatividade de efeitos dos contratos.
Vale a ressalva, todavia, de que a moderna compreensão das relações contratuais, inspirada pela influência das doutrinas solidaristas do fim do século XIX e pelo advento do welfare state[3] houve por bem relativizar a extensão e compreensão de ditos princípios clássicos, entre os quais o da força obrigatória dos contratos.
Acerca do tema há vasta doutrina de Direito Civil[4] que, em apertada síntese, indica a transição de um modelo liberal e individualista para um modelo que permitiria maior intervenção do estado nas relações entre particulares e a busca pela manutenção do equilíbrio nas contratações.
Entre nós, a expressão de tal marcha evolutiva da compreensão dos contratos foi expressa, entre outras hipóteses, nas fórmulas dos artigos 317[5] e 478[6] do Código Civil de 2002, que tratam da revisão ou rescisão de contratos por onerosidade excessiva.
Nota-se que em ambos os casos, seja para fins de revisão ou de resolução do contrato, exige-se que o negócio jurídico seja afetado por “motivos imprevisíveis” ou “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”. A doutrina de Orlando Gomes fornece uma leitura clara de tais institutos:
(…) quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração no estado de fato contemporâneo à celebração do contrato, acarretando consequências imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no cumprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito.
Feitas tais considerações e retomando-se a questão em torno dos contratos de compra e venda futura de produtos agrícolas, vale a seguinte indagação: a variação positiva do preço das commoditiesnegociadas no período entre a contratação e a entrega do produto se configuraria como um “motivo imprevisível” ou “acontecimento extraordinário” que justifique a revisão ou resolução do contrato pelo vendedor?
A resposta a tal indagação é negativa e de facílima obtenção, uma vez que há farto acesso aos bancos de dados de preços de commodities agrícolas, que nos permitem a notar que as oscilações de mercado são comuns e esperadas. Veja-se abaixo a compilação de dados do índice CEPEA/Esalq-Paraná[7], com a indicação de variação de preços (considerando-se o período anual a partir do mês de abril), em R$ e US$:
Como se pode notar do recorte acima, que leva em conta o período de 10 anos-safra, a variação de preços da commodity é elemento natural e esperado da atividade rural. Neste sentido, inclusive, nota-se que o produtor que tenha fixado preços ao longo do ano 2020, muito provavelmente se beneficiou de uma oportunidade substancial frente à cotação do ano anterior. Tomando-se os dados acima, é possível que uma venda futura pactuada em 2020, para entrega em 2021, tenha sido firmada em preços até 50% superiores aos praticados em 2019 (+14,65% considerando-se o preço em USD).
Portanto, a mera atenção aos fatos e aos dados amplamente disponíveis revela o descabimento da argumentação corrente em favor da revisão ou rompimento de contratos de venda de produtos agrícolas firmados ao longo do ano passado (2020) cuja liquidação se dará no corrente período de colheita.
Ressalte-se, ainda, que ao produtor assiste a prerrogativa de negociar e firmar novos contratos de venda futura, visando à entrega de seu produto ao término da safra 2021/2022, assim como o fez em 2020, beneficiando-se, portanto, da vertiginosa alta das cotações (em especial em R$) que se observou ao longo do último ano.
Interessante observarmos, finalmente, que de tempos em tempos surgem demandas que ameaçam a solidez das figuras jurídicas que conferem sustentação à moderna agricultura Brasileira, mas que felizmente vem sendo debeladas pelo Judiciário. Assim, por exemplo, o que se deu (i) em torno da legalidade da Cédula de Produto Rural emitida como garantia ou instrumento de hedge, questão em boa medida pacificada após o julgamento do REsp 1023083/GO e em diversos precedentes posteriores[8]; e (ii) em outras tantas ocasiões[9] quanto à validade da fixação de preço de produtos agrícolas em de entrega futura.
Também no caso ora relatado, espera-se que o Judiciário afaste a pretensão de uma minoria de produtores rurais que pretendem a quebra ou revisão de contratos firmados ao longo do ano passado e cuja liquidação se dará neste primeiro semestre de 2021. Conforme se demonstrou acima, os meios de fixação de preços são ferramentas essenciais à agricultura moderna e as variações das cotações entre o momento da celebração do contrato e a entrega da mercadoria são incitas a esta modalidade de negócio, não se configurando de modo algum como hipótese que comprometa a legalidade de tais avenças.
—
Notas:
[1] Conforme amplamente noticiado, por exemplo: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/editorial-economico,precos-sustentam-as-exportacoes-do-agronegocio,70003624798
[2] GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. 27ª edição. Rio de Janeiro: Forense, p. 32.
[3] A este respeito, vale a transcrição da doutrina de San Tiago Dantas:
“Duas são as causas que influenciam a evolução da teoria dos contratos, exercendo pressões crescentes sôbre a sua estrutura sistemática: a) o sentido solidarista, que prepondera na política contemporânea dos Estados democráticos; b) a intervenção crescente do Estado nas relações econômicas, para exercer, por órgãos próprios, um número cada vez maior de atividades.”
DANTAS, San Tiago. Evolução Contemporânea do Direito Contratual Dirigismo – Imprevisão. Revista dos Tribunais RT 195/544 jan./1952.
[4] Por exemplo:
COUTO E SILVA, Clovis V. do. A Teoria da Base do Negócio Jurídico no Direito Brasileiro. Revista dos Tribunais | vol. 655/1990 | p. 7 – 11 | Maio / 1990.
LEÃES, Luis Gastão Paes de Barros. A Onerosidade Excessiva no Código Civil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 31/2006 | p. 12 – 24 | Jan – Mar / 2006.
MARTINS-COSTA. Judith. Crise e Modificação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro. Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 3 | p. 1121 – 1148 | Jun / 2011 DTR\2012\1946
PUGLIESE. Antonio Celso Fonseca. Teoria da Imprevisão e o Novo Código Civil. Revista dos Tribunais | vol. 830/2004 | p. 11 – 26 | Dez / 2004.
[5] Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
[6] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
[7] Base de dados disponível em https://www.cepea.esalq.usp.br/br/indicador/soja.aspx
[8] Por exemplo: REsp 866414/GO, REsp 1320167/SP, REsp 866414/GO.
[9] Por exemplo: REsp 977007/GO, REsp 783404/GO, REsp 945166/GO.