Direito Agrário

Ganho de capital na venda de imóveis rurais

Direito Agrário

por Francisco de Godoy Bueno.

Tributar o patrimônio, especialmente o imobiliário, sempre foi um fetiche do fisco brasileiro. Se é verdade que nunca se conseguiu estabelecer por Lei o imposto sobre grandes fortunas previsto pelo Art. 153 da Constituição Federal, quanto ao patrimônio imobiliário, urbano e rural, é crescente a tentativa de agravar a arrecadação, por meio de crescentes atualizações do IPTU e do ITR.

No caso do ITR (imposto territorial rural), a definição da base de cálculo, ou seja, do valor da terra nua, sempre foi um problema para o fisco e para os contribuintes, na definição do seu critério de avaliação e atualização. Até 1996, esse valor era o cadastral, definido de ofício pelo INCRA, e dificilmente atualizado. A partir de 1996, passou a ser declarado pelo contribuinte, proprietário ou possuidor do imóvel rural, mediante autolançamento.

Para estimular a atualização desses valores, a Lei nº 9.393/96 estabeleceu que o valor declarado pelo contribuinte (correspondente ao valor de mercado do imóvel) deveria servir de base para o pagamento de indenizações, em processos de desapropriação (Art. 22, cuja aplicação já tem sido há muito afastada pela jurisprudência) e para a tributação do ganho de capital na venda do imóvel rural.

O lucro na venda do patrimônio é uma realidade importante da maior parte das empresas no agronegócio. Atividade muito intensiva em investimento fixo, a agropecuária é também uma importante atividade de desenvolvimento imobiliário, em que as pessoas e empresas investem em um fundo rústico para torna-lo mais produtivo, agregar valor e, com justiça, vender por valor mais caro do que compraram, pleiteando um lucro adicional pelo investimento, além do que foi possível auferir com a atividade agrária.

Em que pese o lucro patrimonial seja definido sob o aspecto econômico pela diferença entre o custo e o valor da venda do imóvel – esta diferença utilizada como regra como base de cálculo para o imposto de renda incidente sobre o ganho de capital, para o imóvel rural, por razões extrafiscais, o legislador previu um cálculo diferente.

O Art. 19 da Lei nº 9.393/96 estabeleceu que, a partir do dia 1º de janeiro de 1997, para fins de apuração de ganho de capital e definição da base de cálculo para o imposto de renda devido na venda dos imóveis, deverá ser considerado ganho de capital a diferença entre o valor da terra nua (VTN) declarado, respectivamente, nos anos da ocorrência de sua aquisição e de sua alienação. Excetua-se, assim, para os imóveis rurais adquiridos a partir do dia 1º de janeiro de 1997, a regra geral de que o ganho de capital tributável é o correspondente à diferença do valor custo e da alienação.

Esse postulado legal causa perplexidade, mas tem sua razão de ser. De um lado, incentivar a atualização do valor cadastral do imóvel, de modo a aproximar (ou tornar idêntico) o valor declarado para fins de ITR e o valor efetivo das transações imobiliárias. De outro lado, em virtude disso, aumentar a arrecadação do imposto sobre o patrimônio, ainda que possibilitando eventual isenção do imposto sobre a renda, nos casos em que os valores não fossem coincidentes.

A legislação não faz diferença quanto às pessoas físicas ou jurídicas proprietárias de imóveis, pelo que o regime se aplica tanto para a venda de imóvel rural por pessoa física quanto para a venda de imóvel rural do ativo imobilizado de pessoas jurídicas. Entretanto, em 26 de março de 2019, a Receita Federal publicou a Solução de Consulta nº 118 – Cosit, que limita seriamente a aplicação do dispositivo, causando grande insegurança para a tributação do ganho de capital na venda de imóveis rurais do ativo imobilizado por pessoas jurídicas.

De modo vinculativo aos contribuintes, o fisco estabeleceu que, quanto ao imposto de renda incidente sobre o ganho de capital na alienação de imóveis rurais, “no caso de alienação de imóvel rural antes do período fixado para entrega do DIAT, o valor a ser adotado como venda, para fins de apuração de ganho de capital a ser tributado pelo IRPJ, deverá ser o efetivamente praticado na operação de venda”.

Segundo o entendimento do órgão orientador da Receita Federal do Brasil, portanto, o que previsto está previsto na Lei nº 9.393/96 só valeria para os negócios efetuados após o início do prazo para a entrega da Declaração de ITR (agosto/setembro). Em nosso entender, o posicionamento normativo da Receita Federal se mostra equivocado e ilegal.

Em primeiro lugar porque a interpretação da Lei fiscal não pode implicar no afastamento do sentido expresso da norma, que estabelece, sem margem a dúvidas, que, para os imóveis adquiridos após o exercício de 1997, o custo de aquisição e valor da venda do imóvel rural o VTN declarado na DIAT-ITR. Não obstante o posicionamento administrativo da Receita Federal, para os imóveis nessa situação, não há fundamento legal para exigir a cobrança de ganho de capital com base nos valores efetivos da transação.

Em segundo lugar, porque o fato gerador do ITR ocorre em 1º de Janeiro de cada ano (Art. 1º da Lei nº 9.393/96), pelo que o valor declarado na DIAT em setembro refere-se ao valor do imóvel em janeiro, o que por si implicaria em uma contradição ao postulado assumido pela Receita Federal na Solução de Consulta. De fato, ainda que declarado a posteriori, o valor do imóvel constante na DIAT é aquele que deve corresponder a um valor estimativo para o ano-exercício e por isso considerado como valor cadastral e fiscal. Evidentemente, quando a Lei nº 9.393/96 estabelece como critério definidor da base de cálculo o VTN declarado na DIAT-ITR pressupõe o último valor constante do cadastro do imóvel perante o fisco ou, ao menos, o valor considerado para fins de ITR no exercício em que ocorreu a transação imobiliária.

Em terceiro lugar, não é demais chamar a atenção de que o entendimento da Receita Federal implica em grave insegurança jurídica já que, como reconheceu o Auditor fiscal responsável pelo posicionamento, a definição da data de entrega da DIAT é a própria autoridade fiscal, pelo que essa data essa sempre poderia ser alterada pelo fisco, por instrução normativa, limitando discricionariamente os efeitos do disposto no Art. 19 da Lei nº 9.393/96.

É verdade que a solução do legislador de 1996 causa estranheza aos tributaristas e fiscalistas. Ao definir um critério de definição de base de cálculo do ganho de capital valores não necessariamente correspondentes àqueles da transação imobiliária, a previsão legal possibilita que a tributação sobre a renda não seja correspondente à variação patrimonial da pessoa física ou da pessoa jurídica que vendeu o imóvel rural, o que implica uma grande oportunidade para elisão fiscal ou planejamentos tributários.

Não cabe ao fisco, no entanto, por meio de solução de consulta, desqualificar a Lei ou limitar a sua aplicação ao seu modo de pensar e interesse em tributar. Se a Lei não for satisfatória, que se mude. Enquanto isso, é dever cumprir a Lei, pelo que devem os contribuintes afetados questionar o entendimento normativo da Receita Federal perante o Poder Judiciário.


Francisco de Godoy Bueno – Advogado, sócio do Bueno, Mesquita e Advogados; Mestre e Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Vice-Presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB)