Direito Agrário

Arbitragem nos contratos agrários e agroindustriais: a importância da prova

Direito Agrário

por Thiago Marinho Nunes, FCIArb.

 

A arbitragem é conhecida por ser um método de resolução de conflitos mais atraente do que o processo judicial por uma série de elementos enaltecidos pela doutrina arbitral: confidencialidade, celeridade, livre escolha dos julgadores pelas partes, flexibilidade procedimental, inter alia[1]. Contudo, um elemento de grande importância para a resolução justa de um litígio, e ainda pouco explorado pela doutrina como uma faceta das vantagens da arbitragem, é produção da probatória.

Certamente, a qualidade da produção da prova na arbitragem se diferencia daquela no âmbito do processo judicial, envolto em uma estrutura claramente deficiente. Com efeito, a produção probatória na arbitragem é dotada de elementos flexíveis e adaptáveis ao caso concreto, sem que se precise ater-se aos dispositivos que incidem no processo judicial para a sua a regulação, incluindo, mas não se limitando, à ordem de sua produção[2].

Assim, por exemplo, no âmbito dos litígios decorrentes de operações societárias, constitui prática normal que as partes, em conjunto com o tribunal arbitral, adotem métodos de modo a otimizar a produção da prova. Nesse sentido, em uma arbitragem discutindo avaliação de empresas, podem os árbitros decidir, antes mesmo de realizar uma verdadeira audiência, que uma reunião de trabalho deva ser feita entre os advogados e os assistentes técnicos das partes de modo a acertarem pontos de convergência e deixarem claros pontos de divergência expostos nos pareceres técnicos apresentados. Trata-se do tipo de medida que, usualmente, não se adota no processo judicial.

É exatamente por causa dessa flexibilidade[3] que a arbitragem pode se revelar de utilidade ímpar ao mercado agroindustrial brasileiro. Sua utilidade beneficiará a boa resolução, seja de litígios que decorram de contratos agroindustriais, daqueles de integração vertical[4], bem como de contratos agrários[5].

Como em todas as atividades comerciais, dentre as quais se incluem aquelas desenvolvidas no âmbito das avenças agroindustriais, divergências de baixa, média ou alta complexidade podem surgir. Normalmente, os litígios contemplam questões como qualidade de eventual commoditie agrícola, processamento e armazenamento de produtos, possibilidade de rotação de culturas agrícolas em instrumentos de arrendamento e/ou parceria agrícola, dentre outros.

Um primeiro exemplo em que se poderia contemplar uma produção probatória diferenciada nos litígios decorrentes de contratos agroindustriais se dá nas operações de compra e venda de cana-de-açúcar. Não raro, as partes divergem sobre o preço da tonelada da referida commoditie agrícola e precisam, desde o início do conflito, produzir prova que ateste o chamado Açúcar Total Recuperável (“ATR”) da cana-de-açúcar, cujo índice é definido por setores autorreguladores do mercado de cana-de-açúcar, como o chamado “Sistema Consecana” [6].  Para tanto, a depender da medida buscada por uma parte eventualmente insatisfeita com o índice do ATR da cana aferido, caberia um dever de produzir provas no curso do procedimento, no sentido de se ter acesso aos laboratórios existentes na usina que recebe a cana-de-açúcar, para que a parte reclamante pudesse atestar a regularidade da aferição e dos testes feitos na cana-de-açúcar entregue, podendo, inclusive colher contraprovas. Tal prova, produzida pelas próprias partes por meio de suas testemunhas técnicas no curso do procedimento arbitral e certamente submetida ao chamado “witness conferencing”[7] substituiria uma eventual demanda de tutela de evidência junto ao Poder Judiciário para a sua obtenção.

Um segundo exemplo residiria nos instrumentos de arrendamento rural e de parceria agrícola regidos por regramentos antigos e objeto, até os dias atuais, de estudo e interpretação, como o Estatuto da Terra[8]. Nessas avenças, o proprietário de determinada área rural (uma fazenda, por exemplo), cede o terreno a uma contraparte, que terá o direito de plantar na área e gerar produtividade[9].

Um ponto que pode chamar atenção nesse tipo de negócio diz respeito à possibilidade de o arrendatário – nos casos de arrendamento rural – ou o parceiro-outorgado – no caso de parceria agrícola – explorarem outras culturas na terra cedida que não aquela objeto de contratação prévia, mas que seja pontual, e gere benefícios ao solo e não cause prejuízos ao arrendante ou parceiro-outorgante. Tal tipo de impasse certamente envolveria não apenas sofisticadas teses de direito contratual, mas também de prova técnica, cujo escopo seria a avaliação da prática de rotação de culturas no solo e suas consequências.

Com efeito, nesse tipo de contratação, é normal que o parceiro outorgado seja um agricultor com conhecimento técnico no manejo do solo e na agricultura convencional, decidindo, no curso da relação contratual e caso entenda necessário e benéfico à relação entre as partes, promover eventual rotação de cultura, com vistas à melhoria da qualidade do solo[10], sua proteção contra a erosão, dentre outras vantagens. Um exemplo, nesse sentido, se dá quando ocorre a prática de adubação verde, como as leguminosas, na cultura de cana-de-açúcar. A doutrina técnica, a esse respeito, aduz o seguinte:

A prática da adubação verde com leguminosas na cultura da cana-de-açúcar é recomendada durante a reforma do canavial (CARDOSO, 1956), proporcionando as seguintes vantagens: não implica na perda de um ano agrícola; não interfere na germinação da cana; apresenta custos relativamente baixos; promove aumentos significativos nas produções de cana e de açúcar em pelo menos dois cortes; protege o solo contra erosão e evita a multiplicação de ervas daninhas

[…]

Assim, tem-se a preocupação constante com a recuperação ou a manutenção da fertilidade dos solos para obtenção de rendimentos econômicos, tanto de açúcar quanto de energia renovável oriunda da cana. A partir disso, recomenda-se há pelo menos cinco décadas, a prática da adubação verde, sobretudo com a utilização de leguminosas, por ocasião da reforma do canavial, após o quarto ou quinto corte e antes do plantio de ano-e-meio, para estabelecer a cobertura vegetal no solo quando em pousio (MASCARENHAS et al., 2008).”[11].

Os pontos acima elencados, por sua especificidade e tecnicidade, demandam uma apuração técnica cautelosa em caso de conflito entre as partes. O uso do processo judicial para a resolução desse tipo de questão se revela inadequado em virtude das já conhecidas deficiências do sistema judicial (e jamais do magistrado, que se sujeita a tal sistema). Dessa forma, a adequação do uso da arbitragem é inquestionável.

Os casos objeto dos dois exemplos hipotéticos supracitados exigem a obtenção de prova, de parte a parte, para suportar seus pleitos. No âmbito arbitral, para que a missão jurisdicional seja plena e efetiva[12], isto é, que haja a entrega de uma sentença exequível e definitiva (haja vista a ausência de recurso contra a sentença arbitral), a prova a ser produzida pelas partes pode ser crucial, seja ela documental, fática ou técnica. Ademais, quanto mais cedo as partes se prepararem, formando tal acervo probatório com antecedência[13], mais eficiente será a condução da arbitragem e melhor o seu resultado.

Notas:

[1] Ver, a esse respeito NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem no Agronegócio: flexibilidade, tecnicidade e adequação. In: REIS, Marcos Hokumura (coord.). Arbitragem no Agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018, p. 21-35.

[2] Nesse sentido, ver CARMONA. Carlos Alberto. O processo arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 21-31, jan.-abr. 2004.

[3] A respeito do assunto ver: Flexibilidade na forma de produção da prova no procedimento arbitral – Migalhas. Acesso em 25 fev. 2023.

[4] A esse respeito, vide a Lei nº 13.288, de 16 de maio de 2016, que dispõe sobre os contratos de integração, obrigações e responsabilidades nas relações contratuais entre produtores integrados e integradores, e dá outras providências: L13288 (planalto.gov.br).

[5] Apesar de não ser objeto dessas linhas, e eventual dicotomia entre contratos agroindustriais e contratos agrários é bem colocada por Francisco de Godoy Bueno: “A peculiaridade dos contratos agroindustriais em relação a outros contratos de integração entre empresas está na especialidade da atividade exercida por uma das partes – a empresa agrária. Ao pressupor que um dos contratantes exerce atividade agrária, verifica-se nesses contratos a dependência do cumprimento das suas prestações ao ciclo agrobiológico. Os contratos agroindustriais são, por conseguinte, contratos agrários pela sua vinculação com o fato técnico e o ciclo agrobiológico (Contratos agrários agroindustriais: análise à luz dos contratos atípicos. São Paulo: Almeida, 2017, p. 201).

[6] Como a eficiência do mercado está intimamente relacionada à quantidade de produtos produzidos pelas usinas, que, por sua vez, dependem da quantidade de açúcares extraídos da cana, a precificação da cana-de-açúcar pelo Sistema Consecana é fundado na qualidade da cana-de-açúcar para o objetivo da cadeia da agroindústria canavieira. Por isso, pelo Sistema Consecana, o preço de uma tonelada de cana deverá ser apurado pela quantidade total de açúcares (glicose, sacarose e frutose) extraídos de um processo teórico industrial de moagem da cana-de-açúcar, com eficiência de 91,5%, e que são denominados de Açúcar Total Recuperável ou “ATR”.

[7] Ver, a esse respeito: A evolução do conceito de prova técnica na arbitragem – Migalhas. Acesso em 26 fev. 2023.

[8] Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 (L4504 (planalto.gov.br). Vide também o Decreto nº 59.566, de 14 de novembro de 1966, que regulamenta diversas seções do Estatuto da Terra (D59566 (planalto.gov.br)

[9] Segundo explica Thiago Soares Gerbasi: “Na prática, na parceria agrícola empresarial, o cedente exerce o ato de destinação do seu imóvel, elegendo a atividade de exploração e a cultura específica a ser produzida, contudo, repassa ao contratante sem terra, a gestão produtiva da atividade. Ou seja, o cedente não exerce mais integralmente o poder de destinação do fundo rústico e, portanto, abdica da condição de empresário em favor do contratante sem terra” (Contratos de parceria rural. Qualificação, regime jurídico e questões polêmicas. Dissertação (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo. 228.

[10] A importância do bom manejo do solo é assim explicado pela doutrina técnica: “O manejo inadequado do solo, ao longo do tempo, trazer várias consequências, exaurindo-o de suas reservas orgânicas e minerais, transformando-o em terras de baixa fertilidade e erodindo grande parte do solo podendo tomar a área imprópria para o cultivo (Andrade, 1982)”. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Utilização de Adubação Verde na cultura da Cana-de-Açúcar, Piracicaba, 2005, p. 4.

[11] MENDES, Fernanda Latanze. Eficiência de absorção de fósforo por diversas espécies de adubos verdes e aproveitamento desse nutriente pelas culturas de cana-de-açúcar e de arroz. Tese (Solos e Nutrição de Plantas). Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2010, p. 26-27. Ver, ainda, CACÉRES, Neivaldo Tunes. Adubação verde com leguminosas em rotação com cana de açúcar (Saccharum spp). Dissertação (Solos e Nutrição de Plantas). Universidade de São Paulo, Piracicaba, 1994, p. 1-2 e 16 e CRUZ, Marcos Roberto de Oliveira; MAGALHÃES, Marcelo Marques de. Rotação de culturas e efeito sobre os custos na reforma de canavial na região da alta paulista, Fórum Ambiental da Alta Paulista, v. 9, n. 7, 2013, p.-96-97.

[12] Oportuna, nesse sentido, a lição de José Roberto Bedaque: “Processo efetivo é aquele que, observado o equilíbrio entre os valores segurança e celeridade, proporciona às partes o resultado desejado pelo direito material (…)” (Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 49).

[13] No que tange à distribuição do ônus probatório na arbitragem, é diga de nota a lição de Octávio Fragata Martins de Barros: “O princípio da igualdade, imposto aos árbitros, significa também, portanto, que o árbitro deve considerar os argumentos apresentados por ambos os lados com o mesmo critério, aplicando-lhe o mesmo ônus da prova. Em outras palavras, o árbitro deve aplicar a mesma cautela na análise dos argumentos propostos pelo demandante ou demandado”.(Como Julgam os Árbitros: uma leitura do processo decisório arbitral. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 126).

 

Thiago Marinho Nunes, FCIArb
Doutor em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Mestre em Contencioso, Arbitragem e Modos Alternativos de Resolução de Conflitos pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas; Vice-Presidente da CAMARB; Fellow do Chartered Institute of Arbitrators; Professor Titular de Arbitragem e Mediação do IBMEC-SP; árbitro independente.