Direito Agrário

Agricultor que altera curso de águas da chuva tem de indenizar vizinhos por eventuais prejuízos

Direito Agrário

A atuação humana que altera o curso das águas pluviais e causa prejuízo à vizinhança gera o dever de indenizar, já que o vizinho só é obrigado a tolerar a enxurrada quando seu fluxo decorre exclusivamente da natureza.

A partir desse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso de um agricultor que tentava se isentar da obrigação de indenizar seu vizinho, alegando não haver obras em seu terreno que interferissem no curso das águas da chuva.

As duas partes do processo são proprietárias de terrenos rurais e atuam na agricultura. O agricultor condenado pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) a pagar indenização ao vizinho é dono de uma área mais alta, separada do adjacente apenas por uma estrada.

Na ação de indenização, o agricultor com o terreno na parte inferior alegou que o fluxo de águas que recebia em sua propriedade prejudicava o cultivo, e os transtornos eram gerados pela falta de contenção na propriedade superior, bem como pela atividade de criação de gado desenvolvida pelo vizinho.

Em primeira e segunda instâncias, o pedido foi julgado procedente, e o dono do terreno superior foi condenado a realizar as obras de contenção e a pagar indenização pelos prejuízos materiais suportados pelo outro.

Situação agravada

Segundo a relatora do recurso especial, ministra Nancy Andrighi, foram corretas as instâncias ordinárias na aplicação do artigo 1.288 do Código Civil, segundo o qual o dono do terreno inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior, desde que as condições do seu imóvel não sejam agravadas por obras feitas no terreno superior.

A relatora destacou que, embora o dono do terreno superior não tenha realizado obras em sua propriedade, ficou comprovado que a pecuária exercida por ele provocou o agravamento da condição natural e anterior do outro imóvel, surgindo daí o dever de indenizar.

Nancy Andrighi afirmou que a norma do artigo 1.288 deve ser interpretada à luz do princípio constitucional da função social, que qualifica a propriedade como uma relação jurídica complexa, em que se estabelecem direitos e deveres recíprocos, a partir da articulação entre o interesse do titular e a utilidade social.

Fonte: STJ.

Leia a íntegra da decisão:

 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.589.352 – PR (2016/0060888-2)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

 

 RELATÓRIO

 

O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR):

 

 Cuida-se de recurso especial interposto por APARECIDO ALVES DE OLIVEIRA E OUTROS, fundado nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ/PR.

Ação: de obrigação de fazer c/c indenização, ajuizada por DIMAS DEL CONTE em face de APARECIDO ALVES DE OLIVEIRA e CLORINDA PAVESI DE OLIVEIRA (sucedida pelos herdeiros ELI DE OLIVEIRA BURANELI e EDER ALVES DE OLIVEIRA), em virtude de o imóvel daquele receber grande fluxo de águas pluviais do imóvel destes, por conta da ausência de contenção.

Sentença: o Juízo de primeiro grau julgou procedentes os pedidos para condenar os recorrentes à realização de obras, no prazo de 120 dias, para proteger o solo e combater a erosão, sob pena de multa diária, bem como à indenização dos prejuízos materiais suportados pelo recorrido.

 Acórdão: o TJ/PR negou provimento ao agravo retido e à apelação interpostos pelos recorrentes, nos termos da seguinte ementa:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DANO INFÉCTO. AGRAVO RETIDO. REITERAÇÃO DE FUNDAMENTOS EXPENDIDOS NA CONTESTAÇÃO. DEMONSTRAÇÃO DOS MOTIVOS DA IRRESIGNAÇÃO DA PARTE COM O POSSÍVEL DESACERTO DA DECIDADE. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. INTIMAÇÃO PARA MANIFESTAÇÃO SOBRE O LAUDO PERICIAL NA VÉSPERA DA AUDIÊNCIA DESIGNADA. RENOVAÇÃO DE INTIMAÇÃO ANTERIOR. CANCELAMENTO DE AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. JULGAMENTO DA LIDE NO ESTADO DO PROCESSO. CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO VERIFICADO. NULIDADE DA SENTENÇA. FUNDAMENTAÇÃO CONCISA. AUSÊNCIA DE VÍCIO. DIREITO DE VIZINHANÇA. IMÓVEL RURAL. CONTENÇÃO DE ESCOAMENTO DE ÁGUAS DECORRENTES DE PRECIPITAÇÕES PLUVIOMÉTRICAS EM IMÓVEL SITUADO EM PLANO SUPERIOR A IMÓVEL INFERIOR. RESPONSABILIDADE CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

1. “O princípio da dialeticidade recursal deve ser compreendido como o ônus atribuído ao recorrente de evidenciar os motivos de fato e de direito para a reforma da decisão recorrida, segundo interpretação conferida ao art. 514, II, do CPC”, e assim a parte “não fica impedida de reiterar os fundamentos expendidos na inicial ou em outras peças processuais, desde quando estas forem suficientes para demonstrar os motivos da irresignação do insurgente, assim como o possível desacerto da decisão que se pretende desconstituir/modificar. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (AgRg-AgRg-REsp 1.309.851 – 4ª T.)

2. Em que pese as razões de apelação reiterem fundamentos expostos na contestação, apresentam arrazoado especifico, demonstrando as razões pelas quais a decisão mereceria ser reformada, com suficiente fundamentação, a exemplo de cerceamento de defesa, da ausência de fundamentação e de desviar-se do alegado na contestação, invocando dispositivos legais equivocados, de modo a não ocorrer ofensa ao princípio da dialeticidade, impondo-se o conhecimento do recurso.

3. Constando anterior intimação da parte para se manifestar sobre o laudo pericial apresentado nos autos, a mera renovação de intimação para o mesmo fim na véspera da data designada para audiência de instrução e julgamento, sem se observar que essa providência já constava dos autos, não implica em violação ao art. 435/CPC, diante da preclusão operada (art. 183/CPC), não configurando cerceamento de defesa.

4. O cancelamento da audiência de instrução e julgamento anteriormente designada, com dispensa da oitiva das testemunhas arroladas, na véspera da data designada, não configura cerceamento de defesa se a parte não demonstra quais fatos dependeriam de ser comprovados, em respeito ao princípio do livre convencimento do juiz e da livre apreciação das provas requeridas, quando se considera ser suficiente a prova documental e pericial constante dos autos.

5. Ainda quando de forma um tanto singela a sentença analisa os fatos arguidos pelas partes, concluindo com base na prova pericial contida nos autos, ser procedente a pretensão, apontando os fatos que levaram à conclusão adotada, mesmo quando contrária aos interesses da parte requerida, não se verifica nulidade a ser pronunciada.

6. A Constituição Federal de 1988 garante o direito de propriedade como direito fundamental, assegurando a sua inviolabilidade (art. 5°, caput, e XXII), com da observância de sua função social (art. 5°, XXIII), inclusive na órbita econômica (art. 170, II e III), impondo-se assim ao proprietário a obrigação de executar e manter as acessões físicas e técnicas adequadas na exploração da propriedade rural, de modo a garantir o correto escoamento das precipitações pluviométricas para imóvel vizinho situado em plano inferior, de modo a não agravar sua situação, consoante exegese dos arts. 1.228, §§ 1° e 2°, 1.288, segunda parte, 1.277 e 1.280/CCv.).

7. Comprovada a existência de obras artificiais sobre a propriedade rural, mesmo que antes de sua aquisição pelo atual proprietário, e independentemente delas, a omissão do proprietário na sua conservação ou implantação, conforme seja o caso, permitindo o acúmulo de águas causando degradação ao imóvel situado em plano inferior, caracteriza ato ilícito, dado ao abuso no exercício do direito de propriedade, suscetível de impor o dever de reparação civil, na forma do art. 187 c/c art. 927, do Código Civil.

8. Apelação Cível e Agravo Retido à que se negam provimento.

Embargos de declaração: opostos pelos recorrentes, foram rejeitados.

Recurso especial: apontam violação dos arts. 5º, LVI, e 93, IX, da Constituição Federal, dos arts. 128, 130, 330, 471, 435, parágrafo único, 458, todos do CPC/73, do art. 1.288 do CC/02, e do art. 69 do Decreto 24.643/34 (Código de Águas), bem como dissídio jurisprudencial.

A par da nulidade da sentença, por inexistência ou deficiência de fundamentação, sustentam a ocorrência de cerceamento de defesa e ofensa ao contraditório, em virtude da inversão da ordem de produção de provas e do cancelamento da audiência de instrução e julgamento, seguido do julgamento antecipado da lide.

Asseveram que a sentença foi proferida com base no laudo pericial, mas as partes não tiveram a oportunidade de obter os esclarecimentos do perito.

Aduzem que o recorrido, enquanto proprietário do prédio inferior, tem a obrigação legal de receber as águas pluviais que correm naturalmente do prédio superior. Afirmam, ademais, que a área que o recorrido alega estar sendo erodida por sulcos e voçorocas, está localizada na parte mais baixa do seu terreno, por isso está sujeita a receber águas pluviais provenientes das áreas mais altas do seu próprio imóvel.

Ressaltam que não realizou qualquer obra que pudesse agravar a situação do imóvel do recorrido.

Juízo prévio de admissibilidade: o TJ/PR admitiu o recurso especial.

É o relatório.

 

VOTO

 

O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR):

O propósito recursal é dizer sobre: (i) o cerceamento de defesa e a ofensa ao contraditório; (ii) a nulidade da sentença; (iii) a responsabilidade por danos em imóvel inferior ocasionados por fluxo de águas pluviais advindas de imóvel superior.

  1. DA VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL

Conforme o disposto no art. 105, III, “a” da CF/88, não cabe recurso especial fundado em violação de dispositivo constitucional.

  1. DO CERCEAMENTO DE DEFESA E DA OFENSA AO CONTRADITÓRIO

Alegam os recorrentes terem sido surpreendidos, em 28/11/2007, véspera da audiência de instrução e julgamento, com a decisão do Juízo de primeiro grau que cancelou o referido ato, por entende-lo desnecessário, e determinou a intimação das partes para se manifestarem, em 10 dias, sobre o laudo pericial.

 Afirmam, à vista disso, ter incorrido o julgador em suposta “inversão da ordem de produção de provas” (fl. 782, e-STJ) e em cerceamento de defesa, porque obstada a oportunidade de obterem os necessários esclarecimentos do perito e de ouvirem as testemunhas arroladas.

Sobre a inversão da ordem de produção de provas, convém trazer à baila estes trechos do acórdão recorrido:

Verifica-se, todavia, que o presente feito foi autuado em 20/08/2004, e após a fase postulatória, por decisão saneadora lançada em 16/11/2005, afastando-se alegação de impossibilidade jurídica do pedido, houve-se por bem deferir a produção de prova pericial e oral requerida pelas partes, fixando-se o prazo de 30 dias antecedentes à audiência, para indicação de testemunhas, designando-se, desde logo o dia 17/08/2006, às 13h30, para ter lugar a audiência de instrução e julgamento, nomeando-se perito na pessoa de TARCINO LUIZ DAVANTEL, o qual deveria apresentar laudo conclusivo no prazo de 60 dias (fls. 221), sendo intimadas as partes em 17/01/2006 (fls. 222- 223).

Os requeridos formularam seus quesitos anteriormente, quando especificaram as provas que pretendiam produzir (fls. 212-213), deixando, porém, de indicar, tempestivamente, assistente técnico (fls. 232), e, apresentada proposta remuneratória pelo nomeado (fls. 237), seguida de impugnação pelo autor (fls. 238 e ss.), reiterada, em termos diversos, em outras duas oportunidades (fls. 252 e 254), seguindo-se apresentação de rol de testemunhas, tempestivamente, pelos requeridos (fls. 258-259), e pelo autor (fls. 260- 261), foram expedidas intimação aos arrolados (fls. 262 e ss.).

Porque não fora ainda realizada a perícia, a pedido do autor, adiou-se a audiência de instrução, para as 15h00, do dia 15/03/2007 (fls. 274), reiterando o autor a necessidade de novo adiamento, porquanto ainda sequer resolvida a questão da remuneração do perito (fls. 295), o qual manifestou-se apresentando nova proposta de remuneração (fls. 296), cujo valor fora depositado pelo autor (fls. 298), voltando o requerido a formular quesitos e, somente agora, a indicar assistente técnico (fls. 303).

Adiada novamente a audiência, para o dia 29/11/2007, às 13h30 (fls. 305), o requerido apresentou quesitos “suplementares” (fls. 306), sendo então apresentado laudo pericial nos autos (fls. 315-323), seguida da manifestação do assistente indicado pelo requerido (fls. 327 e ss.), quando foi indeferida a petição de agravo do autor, por entender-se não haver qualquer prejuízo pelo fato de receber os quesitos fora do prazo previsto no art. 421, § 1°, I e II/CPC, quando ainda não iniciados os trabalhos periciais, determinando-se a intimação das partes para se manifestar, sobre o laudo pericial (fls. 338-339), sendo novamente intimadas as testemunhas arroladas (fls. 341 e ss.).

Procedida a intimação das partes, inclusive para se manifestar sobre o laudo pericial, mediante regular publicação no DJ em 19/10/2007 (fls. 351), o autor interpôs embargos de declaração (fls. 352-353), em razão do que recebeu-se seu petitório anterior (fls. 309-312), como “agravo de instrumento”, determinando-se novamente, no item 3 a intimação das partes para se manifestar sobre o laudo pericial (fls. 358), e, no dia designado para a realização da audiência de instrução (29/11/2007), sobreveio decisão interlocutória, nestes termos:

Cumpra-se o despacho de fls. 358, item 3.

Melhor analisando os autos, entendo desnecessária a realização de audiência de instrução e julgamento, eis que a prova documental juntada aos autos e prova pericial já são suficientes para convencimento. Quanto ao pedido de reparação de danos, poderá ser comprovado posteriormente, conforme requerido pelo requerente na inicial, todavia pela natureza da causa, vejo por bem possibilitar as partes apresentarem alegações finais em forma de memoriais pelo prazo sucessivo de 10 (dez) dias. Após ao Ministério Público.

Contados e preparados, voltem conclusos para sentença.

Int.

Faxinal, 29 de novembro de 2007

(Ass.) Lydia Aparecida Martins

Juiza de Direito

Na sequência certificou-se a publicação veiculando o despacho anterior (de fls. 358), dando conta de sua publicação no Diário da Justiça, de 28/11/2007, e do início do prazo em 04/12/2007 (fls. 375).

Portanto, a alegação dos apelantes, deduzidas no Agravo Retido e reiterada nas razões da apelação, no sentido de que, somente no dia anterior à audiência designada, ou seja, dia 28/11/2007, é que teriam sido intimados para se pronunciar sobre o laudo pericial, no prazo de 10 dias, conforme a última intimação veiculada (fls. 375), não implica em nenhuma nulidade no feito, pois como visto, os requeridos já haviam sido intimados para se manifestar sobre o laudo pericial (fls. 338-339), conforme publicação realizada no DJ em 19/10/2007 (fls. 351), deixando decorrer in albis o prazo assinado.

Além dos apelantes terem sido intimados para se manifestar sobre laudo em 19/10/2007 (fls. 351), observa-se que antes disso fora juntado aos autos parecer por seu assistente pericial (fls. 327), demonstrando assim estarem ciente da juntada do laudo, mesmo porque o prazo de 60 dias fixados quando da nomeação do expert, em 16/11/2005 (fls. 221), há muito havia expirado, sem que qualquer outro tenha sido fixado nos autos e, mesmo depois da data indicada pelo perito para início dos exames (em 23/03/2007), da qual os agravantes foram regularmente intimados (fls. 302), também decorreu prazo bem superior. Estes fatos deixam evidenciado que os requeridos estavam acompanhando o processo, tanto que providenciaram a apresentação do parecer de seu assistente nos autos, mesmo sem qualquer intimação formal.

Logo, não lhes é dado alegar que a intimação para se manifestar sobre o laudo pericial tenha ocorrido somente com a intimação procedida no dia 28/11/2007 (fls. 375), porque em verdade a intimação válida já ocorreu anteriormente, em 19/10/2007 (fls. 351), sendo certo que a reiteração da intimação não lhes devolve o prazo recursal, quando não há expressa devolução do prazo à parte, como pretendem os apelantes, nos moldes em que bem considera a jurisprudência, mutatis mutantis:

(…)

Na verdade é nítida a pretensão dos agravantes em se beneficiar da forma tumultuada impregnada ao andamento do feito, eis que a determinação de intimação das partes para se manifestarem sobre o laudo, contida no despacho que recebeu o agravo dos autores (fls. 358), é equivocada, não podendo ser considerada como renovação de prazo a intimação procedida no dia 28/11/2007 (fls. 375), até mesmo porque nada fora alegado pelas partes (quanto a eventual reabertura de prazo).

E, eventuais divergências contidas no laudo pericial, em confronto com o parecer técnico do assistente indicado pelos requeridos apelantes (fls. 377 e ss.), não pode servir de suporte legal, para ostentar alegação de cerceamento de defesa, já que é questão de mérito da pretensão, a ser examinada em momento próprio.

Uma vez observada a providência prevista no parágrafo único do art. 435, do Código de Processo Civil, uma vez que as partes foram regularmente intimadas para se manifestar sobre o laudo pericial, não há que se falar em nulidade do feito, quando a parte é novamente intimada, por evidente equívoco de nova determinação judicial nesse sentido, sem qualquer justificativa, operando-se a respeito a preclusão, nos termos do art. 183, do Código de Processo Civil. (fls. 739-740, e-STJ – sem grifos no original)

E, no que tange à produção da prova oral em audiência, consignou o TJ/PR:

Entretanto, em momento algum de suas razões recursais, seja quando da interposição do agravo retido (fls. 376-382), ou mesmo nas razões de apelação, demonstram os apelantes/agravantes, quais os fatos alegados dependeriam de prova oral a ser colhida em audiência de instrução e julgamento, na medida em que apenas referem, que … “minutos antes do início da audiência de instrução e julgamento, quando seguramente, a testemunha mais importante para a apreciação da lide já se deslocava de cidade distinta (Campo MourCto), e as demais, residentes na cidade de Faxinal, haviam deixado o trabalho para comparecer no referido ato, os Requerentes foram surpreendidos pela r. decisão de fls. 373 … (fls. 376 e 531).

Os agravantes não esclarecem que fatos pretendiam provar com as testemunhas arroladas, limitando-se a alegar que já estariam em deslocamento, além de apontar divergências nas respostas aos quesitos, contidas no laudo pericial e no parecer de seu assistente técnico. Todavia, como visto, ainda que se verifiquem eventuais divergências, fosse o caso, deveria a parte ter pleiteado o esclarecimento, ou pronunciamento do perito quando instada a se manifestar sobre o laudo, mas, esta providência não fez, deixando precluir seu direito, vindo apenas em sede de recurso a alegar tal questão.

(…)

Portanto, também não se verifica cerceamento de defesa o julgamento do feito no estado em que encontra-se, especialmente por não ter a parte demonstrado quais os fatos dependeriam de ser provados em audiência de instrução e julgamento. (fls. 743-744, e-STJ)

Com efeito, se os recorrentes não indicaram os fatos que pretendiam esclarecer ou comprovar, de modo a demonstrar o prejuízo por eles suportado com o cancelamento da audiência de instrução e julgamento, não há de ser declarada a nulidade do ato judicial (princípio do pas de nullité sans grief).

Aliás, considerando que o contexto delineado pelo TJ/PR evidencia que “os recorrentes já haviam sido intimados para se manifestar sobre o laudo pericial (fls. 338-339), conforme publicação realizada no DJ em 19/10/2007 (fls. 351), deixando decorrer in albis o prazo assinado”, que “não esclarecem que fatos pretendiam provar com as testemunhas arroladas”, bem como que eles não pleitearam o esclarecimento ou pronunciamento do perito quando instados a se manifestar sobre o laudo, revelam-se insustentáveis as teses de cerceamento de defesa e de ofensa ao contraditório.

 

  1. DA NULIDADE DA SENTENÇA

Defendem os recorrentes a nulidade da sentença, “cuja única fundamentação foi a de transcrever as conclusões da prosaica perícia oficial” e que “somente citou, para dar aparente solidez à carente e deficiente fundamentação, duas ementas de acórdãos que apreciaram situações completamente diversas daquela narrada na presente ação” (fl. 793, e-STJ).

Sobre o tema, a jurisprudência do STJ orienta que não há nulidade do julgamento se a fundamentação, embora concisa, for suficiente para a solução da demanda (AgRg no RE nos EDcl no AgRg no AREsp 1.192.983/SP, Corte Especial, julgado em 07/11/2018, DJe de 20/11/2018; AgInt no AREsp 1.004.066/SP, Quarta Turma, julgado em 22/05/2018, DJe de 01/06/2018; AgInt no REsp 1.599.416/MS, Terceira Turma, julgado em 12/09/2017, DJe de 18/09/2017).

E o STF, ao se manifestar sobre a matéria, no julgamento do AI 791.292 QO-RG (julgado em 23/06/2010, DJe de 12/08/2010), com repercussão geral reconhecida, firmou a tese de que “o art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas” (tema 339).

No particular, o TJ/PR reconheceu que, “ainda que de forma um tanto singela, a sentença analisa os fatos arguidos pelas partes, concluindo com base na prova pericial contida nos autos, ser procedente a pretensão, apontando os fatos que levaram à conclusão da ocorrência de danos passíveis de indenização ao autor, ainda que em sentido contrário dos interesses da parte requerida” (fl. 745, e-STJ).

De fato, os próprios recorrentes admitem que a convicção do julgador está baseada na conclusão do laudo pericial, de modo que, ainda que se cogite o desacerto da decisão, não há falar em ausência ou deficiência de fundamentação.

  1. DA RESPONSABILIDADE POR DANOS EM IMÓVEL INFERIOR OCASIONADOS POR FLUXO DE ÁGUAS PLUVIAIS ADVINDAS DE IMÓVEL SUPERIOR

De acordo com a regra insculpida no art. 69 do Decreto 24.643/34 (Código de Águas), que é a lei geral sobre o aproveitamento das águas comuns e das particulares, os prédios inferiores são obrigados a receber as águas que correm naturalmente dos prédios superiores.

Essa regra foi repetida no art. 1.288 do CC/02 que, sob o enfoque especial dos direitos de vizinhança, assim estabelece: “o dono ou o possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior, não podendo realizar obras que embaracem o seu fluxo; porém a condição natural e anterior do prédio inferior não pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior”.

Ao comentar a referida norma, Francisco Eduardo Loureiro leciona:

A regra contém dois comandos potestativos, vale dizer, não sujeitos à prescrição, com uma única finalidade: a de permitir o escoamento natural das águas. O primeiro comando é para o dono ou possuidor do prédio inferior, no sentido de que se abstenha de construir qualquer obra que embarace o fluxo natural. De outro lado, não está compelido a fazer obras que facilitem o escoamento nem conservar as já existentes, ficando tal ônus a cargo do titular do prédio superior. O segundo comando é para o proprietário ou possuidor do prédio superior, no sentido de que se abstenha de realizar qualquer obra que agrave a situação do prédio inferior. Note-se que não se proíbe a realização de obras, aliás comuns para conduzir as águas em um só ponto, desde que não prejudiquem o vizinho. Se o escoamento é natural, não cabe qualquer indenização ou reclamação do prédio inferior, inclusive no que se refere a sedimentos trazidos pelas águas. (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador Cezar Peluso. 5ª ed. São Paulo: Manole, 2011. p. 1.313 – grifou-se)

No particular, segundo o TJ/PR, “é incontroverso que os requeridos [recorrentes] são proprietários de imóvel dividido pela estrada Barracão, na localidade de Três Barras, zona rural de faxinal, enquanto o autor [recorrido] é proprietário de imóvel vizinho, situado na parte inferior da estrada, recebendo toda precipitação pluviométrica oriunda do terreno dos requeridos” (fls. 747-748, e-STJ).

A leitura do acórdão recorrido revela, ademais, que, embora os recorrentes não tenham realizado obras no imóvel, nele exercem atividade de pasto, tendo sido constatado pelo perito que os animais provocaram danos aos terraços e a compactação do solo, o que facilitou o transbordo das águas pluviais para a propriedade do recorrido, causando-lhe prejuízo. Transcrevem-se, por oportuno, os seguintes trechos do aresto:

Se existiam acessões físicas artificiais sobre o imóvel superior, independentemente de quem as tenha construído, o proprietário atual, para manter a sua exploração, tem sim o dever de mantê-las no estado de servir aos fins pelos quais foram erigidas, quando a sua degradação possa vir a agravar a condição do prédio inferior, como se verifica na situação dos autos. Mesmo que não houvessem quaisquer acessões físicas visando a impedir ou a amenizar o fluxo da precipitação pluviométrica do imóvel superior, a tão só manutenção da propriedade, impõe ao proprietário, em decorrência da sua função social, o dever de adotar medidas eficazes para evitar erosão, com transbordo das águas pluviais, a ponto de causar imóvel a qualquer imóvel vizinho.

O laudo pericial apresentado nos autos confirma todas as conclusões adotas pela sentença, no sentido de que efetivamente há transbordo de água pluvial da propriedade dos requeridos, situada a montante, provocando prejuízo à propriedade do autor, situada a jusante, consistente em erosões de sulco laminar, e que poderiam ser adotadas medidas para resolver o problema da invasão de águas pluviais, consistente basicamente na construção de terraços de descompactação do solo, pois os terraços já existentes não estão posicionados adequadamente de forma vertical, não havendo nenhum sistema de manejo de gado na propriedade dos requeridos, a fim de se evitar que os animais provoquem danos aos terraços e a compactação do solo, facilitando o transbordo das águas pluviais, imperando-se a adoção das técnicas indicadas no laudo para a solução do problema, de modo que preenchidos assim os requisitos dos arts. 186 e 927, do Código Civil, e isto em decorrência da violação ao art. 1.288, e por força do art. 1.277 e 1.280, também do Código Civil. (fl. 751, e-STJ)

A propósito, Ihering há muito já afirmava que “a separação entre os prédios, mesmo quando manifestada exteriormente por fossos, palissadas, muros, etc.; não destrói a sua relação natural de coesão e dependência recíproca” (In: Conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de janeiro: Forense, 1972. p. 18).

Reforça esse entendimento a ideia, nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, de que “em sede de direito de vizinhança, mesmo o uso normal será equiparado ao mau uso se acarretar interferências em imóveis vizinhos” (Obra citada. p. 707). Explicam os autores:

Apesar de o titular da atividade não praticar ato ilícito ou abuso do direito, o eventual excesso nos incômodos pode resultar de uma atividade que seja conciliada a função social da propriedade. De fato, o conflito de vizinhança extrapola a esfera individual dos vizinhos, tanto do que age com excesso ou abuso, como daquele que sofre interferências. Há uma necessária interdependência entre interesses privados e coletivos, aqui entendidos como metaindividuais. O Código Civil de 2002, na diretriz da sociedade, escapa das amarras restritivas do pensamento individualista de tutela aos indivíduos, para o repensar em torno do interesse social, daquilo que interessa a todos e possa justificar a preservação de certas atividades.

Então, do proprietário – assim como do possuidor – exige-se uma atuação voltada não só à preservação do imóvel, mas também à manutenção do equilíbrio e do bem-estar da comunidade em que o bem está inserido.

Sob essa perspectiva, conclui-se que o art. 1.288 do CC/02 há de ser interpretado à luz do princípio constitucional da função social, que qualifica a propriedade como uma relação jurídica complexa, em que se estabelecem direitos e deveres recíprocos, a partir da articulação entre o interesse do titular e a utilidade social.

E, nessa toada, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, ao tratarem da questão das águas no âmbito do direito de vizinhança, bem observam que “as leis da física devem ser respeitadas, em nome da solidariedade que deverá reinar entre os vizinhos”; que “o impulso das águas decorrerá da natureza, e não de canalização artificial de águas”; e que “o prédio inferior suportará aquilo que provém da natureza, não do ser humano” (Curso de Direito Civil: direitos reais. 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 721-722).

Tais considerações induzem à conclusão de que o prédio inferior é obrigado a tolerar o fluxo de águas pluviais apenas quando este decorrer da ação da natureza; do contrário, havendo atuação humana no prédio superior que, de qualquer forma, interfira no curso natural das águas pluviais, causando prejuízo ao proprietário ou possuidor do prédio inferior, a este será devida a respectiva indenização.

Por todo o exposto, mostra-se acertado o entendimento do TJ/PR no sentido de que, “independentemente de ter sido ou não realizada alguma obra pelo proprietário do prédio superior, basta que sua exploração para qualquer atividade, mesmo aquelas compatíveis com sua finalidade, possam vir a causar danos ao imóvel inferior, caracterizando ato ilícito, por abuso no exercício do direito de propriedade, suscetível de responsabilidade civil, na forma dos arts. 187 c/c 927, do Código Civil” (fls. 750-751, e-STJ – sem grifos no original).

Isso porque, comprovado que a atividade exercida na propriedade dos recorrentes provocou o agravamento da condição natural e anterior do prédio inferior, surge para eles o dever de indenizar.

  1. DA CONCLUSÃO

Forte nessas razões, CONHEÇO, EM PARTE, do recurso especial e, nessa extensão, NEGO-LHE PROVIMENTO.

 

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO. VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. NÃO CABIMENTO. CANCELAMENTO DE AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. PRINCÍPIO DO PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. CERCEAMENTO DE DEFESA E OFENSA AO CONTRADITÓRIO NÃO DEMONSTRADOS. NULIDADE DA SENTENÇA AFASTADA. FUNDAMENTAÇÃO CONCISA, MAS SUFICIENTE. DANOS EM IMÓVEL INFERIOR OCASIONADOS POR FLUXO DE ÁGUAS PLUVIAIS ADVINDAS DE IMÓVEL SUPERIOR. ATIVIDADE DE PASTO. AGRAVAMENTO DA CONDIÇÃO NATURAL E ANTERIOR. DEVER DE INDENIZAR. JULGAMENTO: CPC/73.

1. Ação de obrigação de fazer c/c indenizatória por danos materiais, ajuizada em 20/08/2004, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 11/11/2014 e atribuído ao gabinete em 25/08/2016.

2. O propósito recursal é dizer sobre: (i) a nulidade da sentença; (ii) o cerceamento de defesa e a ofensa ao contraditório; (iii) a responsabilidade por danos em imóvel inferior ocasionados por fluxo de águas pluviais advindas de imóvel superior.

3. Conforme o disposto no art. 105, III, “a” da CF/88, não cabe recurso especial fundado em violação de dispositivo constitucional.

4. Se os recorrentes não indicaram os fatos que pretendiam esclarecer ou comprovar, de modo a demonstrar o prejuízo por eles suportado com o cancelamento da audiência de instrução e julgamento, não há de ser declarada a nulidade do ato judicial (princípio do pas de nullité sans grief), revelando-se insustentáveis as teses de cerceamento de defesa e de ofensa ao contraditório.

5. A jurisprudência do STJ orienta que não há nulidade do julgamento se a fundamentação, embora concisa, for suficiente para a solução da demanda.

6. Do proprietário – assim como do possuidor – exige-se uma atuação voltada não só à preservação do imóvel, mas também à manutenção do equilíbrio e do bem-estar da comunidade em que o bem está inserido.

7. O art. 1.288 do CC/02 há de ser interpretado à luz do princípio constitucional da função social, que qualifica a propriedade como uma relação jurídica complexa, em que se estabelecem direitos e deveres recíprocos, a partir da articulação entre o interesse do titular e a utilidade social.

8. O prédio inferior é obrigado a tolerar o fluxo de águas pluviais apenas quando este decorrer da ação da natureza; do contrário, havendo atuação humana no prédio superior que, de qualquer forma, interfira no curso natural das águas pluviais, causando prejuízo ao proprietário ou possuidor do prédio inferior, a este será devida a respectiva indenização.

9. Hipótese em que, embora os recorrentes não tenham realizado obras no imóvel, ficou comprovado que a atividade de pasto por eles exercida no prédio superior provocou o agravamento da condição natural e anterior do prédio inferior, surgindo, pois, o dever de indenizar.

10. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, desprovido.

 

ACÓRDÃO

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nesta parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 02 de abril de 2019(Data do Julgamento)

 

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora