A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) que negou pedido de reintegração de posse de servidão de passagem no qual os autores alegaram que o comprador de terreno vizinho fechou a passagem indevidamente.
No entendimento da Terceira Turma, a abertura de nova estrada pelo recorrido, retirando a utilidade da servidão anterior sem atrapalhar a passagem dos autores da ação (fato superveniente ao ajuizamento da possessória), foi corretamente considerada pelo TJSC ao negar o pedido de reintegração.
Para acessar sua residência, os autores da ação utilizavam um caminho que dividia em duas partes outro terreno, posteriormente comprado pelo recorrido. Interessado em unificar a propriedade, o comprador fechou a passagem – motivo pelo qual os vizinhos ajuizaram a ação de reintegração de posse –, mas, em substituição ao caminho anterior, ele construiu uma via alternativa contornando sua gleba por um dos lados.
Em primeiro grau, o juiz julgou procedente o pedido dos requerentes. Entretanto, em segunda instância, o TJSC deu provimento à apelação, afirmando que a abertura de outra estrada na propriedade teria feito cessar a utilidade da antiga servidão.
Institutos diversos
Ao analisar o recurso apresentado pelos autores da ação de reintegração, a ministra Nancy Andrighi, relatora, fez uma distinção entre passagem forçada e servidão de passagem. Segundo a magistrada, apesar de ambas limitarem o uso pleno da propriedade, entre elas há uma diferença de origem e de finalidade.
A ministra explicou que a passagem forçada decorre diretamente da lei e tem a finalidade de evitar um dano, nas circunstâncias em que o imóvel se encontra sem acesso à via pública, o que impediria seu aproveitamento.
Já a servidão é criada, via de regra, por ato voluntário de seus titulares e, por meio dela, não se procura atender a uma necessidade imperativa, mas conceder uma facilidade maior ao chamado imóvel dominante.
Sem registro
Nancy Andrighi observou que o fato de não haver registro da servidão de passagem não inviabiliza a ação possessória. Segundo ela, a servidão não é presumida nem determinada por lei, mas decorre de ato voluntário, que pressupõe o registro no cartório de imóveis.
No entanto – esclareceu –, a jurisprudência passou a conferir proteção possessória às servidões de trânsito, conforme estabelece a Súmula 415 do Supremo Tribunal Federal (STF): “Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória”.
No caso dos autos, a relatora esclareceu que os recorrentes eram os legítimos possuidores da servidão de passagem e que o recorrido impôs restrições ilegais à fruição da servidão – o que ensejaria, em tese, a procedência da proteção possessória.
Fato superveniente
Contudo, Nancy Andrighi apontou a necessidade de se apreciar, como fato superveniente, uma causa modificativa ou extintiva da servidão de passagem não titulada e aparente. De acordo com a ministra, conforme previsto no artigo 462 do Código de Processo Civil de 1973, é dever do julgador levar em consideração fatos supervenientes ao ajuizamento da ação que possam influir no julgamento do processo.
A relatora destacou que, conforme estabelecido no artigo 1.384 do Código Civil de 2002, para que o dono do imóvel serviente remova a servidão, essa remoção deve ser feita às suas custas e não pode diminuir as vantagens ao imóvel dominante, como ficou caracterizado nos autos.
“A análise feita pelo tribunal de origem demonstra que todos os requisitos para a ocorrência de uma remoção de servidão foram devidamente preenchidos”, afirmou a ministra.
Fonte: STJ.
Confira a íntegra do julgado:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.642.994 – SC (2016/0278715-8)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por MARIA NATÁLIA VIEIRA ALVES e RAUL ANTÔNIO ALVES, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ/SC.
Ação: de reintegração de posse de servidão de passagem, com pedido de liminar, ajuizada pelos recorrentes em face de GERALDO JACQUES TEIXEIRA, que versa sobre a posse de um caminho que, atravessando a propriedade do recorrido, conduz até a via pública.
Sentença: julgou procedente o pedido, confirmando a decisão liminar anteriormente prolatada.
Primeiro Acórdão: em julgamento por maioria, o TJ/SC deu provimento à apelação interposta pelo recorrido, afirmando que fato superveniente, consistente na abertura de outra estrada em sua propriedade teria feito cessar a comodidade e a utilidade da servidão. Além disso, negou provimento à apelação dos recorrente e os condenou em litigância de má-fé, conforme a ementa do julgamento abaixo:
APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SERVIDÃO DE PASSAGEM NÃO TITULADA. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. INEXISTÊNCIA DE REGISTRO QUE, A PRINCÍPIO, É IRRELEVANTE AO EXERCÍCIO DA TUTELA POSSESSÓRIA. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA 415 DO STF. APELO DO RÉU. ALEGADA A EXISTÊNCIA DE FATO SUPERVENIENTE. ABERTURA DE VIA PÚBLICA DURANTE O CURSO DA DEMANDA, QUE FEZ CESSAR A COMODIDADE E A UTILIDADE DA SERVIDÃO. PRETENSÃO DE MANUTENÇÃO DA SERVIDÃO POR MERO CAPRICHO DOS AUTORES. ABUSO DE DIREITO. PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL DOMINANTE QUE, ADEMAIS, ANUIU COM A EXTINÇÃO DA SERVIDÃO, ASSIM QUE FOSSE ABERTO CAMINHO ALTERNATIVO PELO PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL SERVIENTE. OMISSÃO QUANTO AO DEVER DE INFORMAR TAL FATO AO JUÍZO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ CONFIGURADA. APELO DOS AUTORES. PEDIDO DE SUSPENSÃO DA MULTA QUE LHES FOI APLICADA POR ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA. INSUBSISTÊNCIA. BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA QUE NÃO ABARCA EVENTUAIS PENALIDADES APLICADAS DURANTE O TRÂMITE PROCESSUAL. RECURSO DO RÉU PROVIDO E DOS AUTORES DESPROVIDO.
Segundo Acórdão: o Tribunal de origem, também em julgamento por maioria, negou provimento aos embargos infringentes interpostos pelos recorrentes, com fundamentos parcialmente distintos daqueles constantes no julgamento da apelação, conforme a ementa:
EMBARGOS INFRINGENTES. COISAS. AÇÃO DE RE INTEGRAÇÃO DE POSSE. SERVIDÃO DE PASSAGEM. – ACORDÃO QUE REFORMA, POR MAIORIA, A
SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. (1) ADMISSIBILIDADE. GRATUIDADE REVOGADA EM RELAÇÃO A ALGUNS DOS EMBARGANTES E MANTIDA QUANTO AOS DEMAIS EM SEDE DE IMPUGNAÇÃO. RE- CURSO CONJUNTO. PREPARO NÃO RECOLHIDO. NÃO CONHECIMENTO EM RELAÇÃO A PARTE DOS RECORRENTES. – Na hipótese de recurso conjunto, se alguns dos recorrentes não são beneficiários da gratuidade judiciária – revogada em sede de impugnação -, o não recolhimento do preparo implica deserção, impondo o não conhecimento da insurgência em relação aqueles.
(2) SERVIDÃO APARENTE NÃO TITULADA. REQUISITOS CONFIGURADOS. REINTEGRAÇÃO POSSÍVEL. RE- MOÇÃO DA SERVIDÃO, TODAVIA. ÓBICE LEGAL À PROTEÇÃO POSSESSÓRIA. PRESSUPOSTOS VERIFICADOS. MANUTENÇÃO DA CONCLUSÃO MAJORITÁRIA, CONQUANTO POR FUNDAMENTOS EM PARTE DISTINTOS. – Apesar de presentes os requisitos ensejadores da tutela interditai, cabível em se tratando de servidão aparente não titulada, afasta-se a proteção possessória no caso de remoção da servidão levada a efeito pelo dono do prédio serviente, desde que feita à sua custa e sem minorar, em aferição pautada pela razoabilidade, as vantagens do prédio dominante.
(3) ÔNUS SUCUMBENCIAIS. INVERSÃO. LAPSO. SUPRIMENTO. – Impõe-se a adequada inversão dos ônus sucumbenciais se, por lapso, a providência necessária não havia sido realizada no acórdão.
ACÓRDÃO MANTIDO. RECURSO DESPROVIDO.
Recurso especial: alega violação aos arts. 1196, caput e § 2º, e 1378 do CC/2002 e aos arts. 460 e 926 do CPC/73. Sustenta, ainda, a existência de dissídio jurisprudencial.
Admissibilidade: o recurso não fora admitido pelo Tribunal de origem (e-STJ fl. 1012-1014) e, após a interposição de agravo em recurso especial, reconsiderou-se a decisão para melhor exame da matéria (e-STJ fl. 1046).
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
O propósito recursal consiste em reconhecer ou não o direito dos Recorrentes relativos à posse sobre uma servidão de passagem instituída de forma aparente sobre imóvel do recorrido. Em especial, deve-se determinar se há possibilidade de, no bojo de ação possessória, discutir a remoção ou extinção de servidão de passagem não titulada, mesmo que apresentada como fato superveniente.
1. DOS CONTORNOS FÁTICOS DA LIDE
Os recorrentes adquiriram sua gleba no município de Imaruí/SC, em 18/08/1983, e, posteriormente, venderam parcela de sua terra para os interessados. Nos autos, consta que os recorrentes utilizavam para acessar sua residência um caminho que divide em duas partes a gleba maior que era de propriedade de Maria das Dores Machado Brasiliense, posteriormente alienada, nos anos de 2006 e 2007, para o recorrido.
Visando à integração das partes por ele adquiridas, o recorrido construiu uma via alternativa contornando por um dos lados sua gleba, o que, num primeiro momento, chegava às terras dos recorrentes.
Durante o andamento processual, contudo, vislumbrando que essa circunstância desagradava os recorrentes, prolongou o acesso de forma a chegar na área de todos, recorrentes e interessados. A abertura dessas vias é confirmada pela publicação de decretos municipais (079/2007 e 053/2008), cujo teor está transcrito no acórdão da apelação (fl. 866).
Assim que se estabeleceu a primeira via alternativa, no ano de 2007, o recorrido fechou, com a instalação de porteiras, a via que passava através de sua terra. Diante disso, os recorrentes ajuizaram a ação de reintegração de posse.
2. DAS SERVIDÕES E DAS PASSAGENS FORÇADAS
Em primeiro lugar, contudo, deve-se repisar a distinção entre “passagem forçada” e “Abertura alternativa extinção de passagem” já estabelecida nos autos, mas ainda relevantes para o deslinde do julgamento. Apesar de ambas limitarem o uso pleno da propriedade, entre elas há uma diferença de origem e de finalidade.
As servidões são criadas, via de regra, por ato voluntário de seus titulares e, por meio delas, não se procura atender uma necessidade imperativa, mas a concessão de uma facilidade maior ao prédio dominante.
As passagens forçadas, por sua vez, decorrem diretamente lei e tem a finalidade de evitar um dano, nas circunstâncias em que o prédio se encontra encravado, isto é, sem acesso à via pública, o que impediria seu aproveitamento.
Em outras palavras, “trata-se de uma restrição legal ao direito de propriedade que se destina a propiciar saída para a via pública ou para outro local dotado de serventia e pressupõe, portanto, o isolamento ou a insuficiência de acesso do imóvel que pretende o direito à passagem forçada” (REsp 316.045/SP, TERCEIRA TURMA, DJe 29/10/2012).
Por seu caráter elucidativo, cite-se o exemplo doutrinário que evidencia a diferença entre os dois institutos:
Um exemplo ilustrará a diferença. O proprietário do prédio encravado, sem acesso à via pública, pode, em virtude de lei, exigir a passagem pelo terreno alheio. É o direito de passagem forçada, ao qual já aludimos ao estudar os direitos de vizinhança. Emana da lei, e, sem ele, seria impossível ao proprietário do prédio encravado entrar e sair livremente do seu terreno. Vejamos agora uma situação distinta. Um terreno tem um acesso remoto ou estreito a determinada estrada secundária. O terreno vizinho é, todavia, atravessado por excelente estrada principal, à qual o proprietário do primeiro terreno desejaria ter acesso, pedindo, pois que lhe seja concedida uma servidão. Depende tal concessão da boa vontade ou do interesse econômico do proprietário do prédio serviente que iria ser atravessado. Não é um direito emanado da lei. Poderá surgir em virtude de contrato que as partes venham a fazer e que, para valer contra terceiros, deverá constar no Registro de Imóveis. (WALD, Arnoldo. Direito civil: direito das coisas. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pág. 263)
Da mesma forma, como afirmado no julgamento do REsp 223.590/SP, por mim relatado, sobre as diferenças dos institutos:
Convém, de logo, que se frise a distinção entre o direito de passagem forçada regulada pelos denominados direitos de vizinhança e a proteção às servidões. A primeira pressupõe um prédio encravado, com indispensável necessidade de saída para a via pública, assegurando a lei ao proprietário o direito de consegui-la sobre prédios alheios, possibilitando-lhe a destinação econômica. Funda-se, assim, na necessidade e na indispensabilidade. Já a servidão se coloca no cômodo e até no supérfluo. (…) Na servidão de trânsito, as causas de instituição são diversas e podem assentar na utilidade ou mera facilidade. Tanto que, na maioria das vezes, é estabelecida convencionalmente. Não requer a inexistência de outro caminho para atingir-se um prédio distinto ou a via pública” (…) o fato de existir caminho alternativo, que, sem adentrar a área do condomínio, passando apenas pelas terras da fazenda, possibilita o trânsito entre os estábulos e a sede, não prejudica o pedido inicial, não se confundindo o instituto da passagem forçada, direito de vizinhança, com o das servidões. Só aquele pressupõe o encravamento. (REsp 223.590/SP, Terceira Turma, DJ 17/09/2001, p. 161)
Na hipótese dos autos, conforme estabelecido no acórdão dos embargos infringentes, não há dúvidas que o objeto em litígio constituí uma servidão de passagem, conforme os trechos a seguir:
In casu, à luz de tais premissas, vê-se que os fatos não se aproximam de passagem forçada, mas de servidão de passagem, como bem pontuado pela magistrada sentenciante:
A par destes esclarecimentos, e diante do quadro apresentado nos autos, tem-se que não há como dar à controvérsia feições de direito de vizinhança, uma vez que, desde o início, sobressaíram informações embasadas nas declarações dos testigos e na juntada de fotografias, dando conta de que em momento algum ficaram os autores sem acesso à via pública e, portanto, encravados, além do caminho litigado ter resultado de ajuste entre o autor Raul e a proprietária anterior do imóvel. (fl. 579).
Com efeito, conquanto em seu depoimento pessoal o acionante Raul tenha assinalado que, desde que adquiriu a gleba, o único acesso ao seu imóvel era o caminho objeto, o que é corroborado pelas testemunhas Maurílio Luis Nascimento e Rosimere dos Santos Martins, que afirmam que não havia outra via para chegar a sua residência, as demais testemunhas (Pedro Raimundo Sobrinho, Bartinho Rochadel da Silva, Marcio Adriano Rodrigues, lrineu Manoel Espíndola Neto, José Matos, Pedro Raimundo Sobrinho e Laércio Arceno Corrêa) afirmam que havia outros acessos – pela “prainha” e pelo “piquete” -, ainda que mais rústicos e apenas para pedestres ou carro de boi. (e-STJ fl. 947)
O caminho objeto possui, efetivamente, contornos de servidão de trânsito aparente e contínua, o que se extrai da prova testemunhal colhida – adi- ante explorada de forma mais detalhada -e das fotografias (fls. 23/88) e vídeos (fl. 300) acostados ao caderno processual, que demonstram a sua visibilidade a partir das marcas deixadas na terra pela constante passagem, o que impedia até mesmo o crescimento da grama na sua extensão. (e-STJ fl. 951)
Esse fato é de grande relevância para o deslinde deste julgamento, pois, como exposto acima, a servidão tem formas próprias para sua modificação e extinção. Neste ponto, a doutrina é unânime em afirmar que o encravamento do prédio – isto é, a ausência de qualquer acesso às vias públicas – é um requisito apenas da passagem forçada, e não das servidões, como afirma a doutrina:
Extingue-se a passagem forçada e desaparece o encravamento em casos, por exemplo, de abertura de estrada pública que atravessa ou passa ao lado de suas divisas, ou quando é anexado a outro, que tem acesso para a via pública. (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das coisas. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 361).
Por sua vez, a servidão não se presume, nem se forma por força de lei, mas deve ser constituída por ato voluntário, que pressupõe o registro no Cartório de Registro de Imóveis. No entanto, a jurisprudência brasileira evoluiu no sentido de conferir proteção possessória para servidões de trânsito, conforme o teor da Súmula 415/STF: “Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória”.
3. DAS AÇÕES POSSESSÓRIAS: MATÉRIA DE DEFESA
Nos termos da doutrina, as ações possessórias “têm por objetivo restaurar uma situação de fato antecedente à turbação ou ao esbulho, respectivamente, afastando a perturbação à posse ou reinvestindo o possuidor no controle material da coisa; ou, para evitar que uma dessas lesões ocorra” (Arruda Alvim. Defesa da posse e ações possessórias. RePro, v. 29, n. 114, mar./abr. 2004).
Nessas ações, será examinada, exclusivamente, a situação da posse do autor em relação à do réu (ius possessionis), com descarte do exame de uma situação jurídica, externa à posse (descartando o ius possidendi), na conformidade do que consta do art. 1.210, § 2.º, do CC/2002. Ainda conforme a doutrina:
O objeto possível de tais ações é a proteção da posse e de sua titularidade, cujo pedido deve consistir em proteção possessória, especificado em conformidade com a lesão sofrida, na posse (esbulho ou turbação), ou, em relação à qual se teme estar ameaçado, tendo em vista o ilícito cometido pelo réu, ou, que possa vir a ser cometido. A descrição desse ilícito, e, de quem o praticou, deve compor a causa petendi, juntamente com a afirmação da posse do autor. O plano de discussão e avaliação da situação possessória é como situação de fato (situação possessória, exclusivamente), ou seja, fundamentalmente, tendo em pauta o ius possessionis e não o ius possidendi. (Arruva Alvim. Op.cit.).
No recurso em julgamento, resta amplamente demonstrado que os recorrentes eram os legítimos possuidores da servidão de passagem e que o recorrido impôs restrições, de forma ilegal, à fruição da servidão, o que ensejaria a procedência da proteção possessória, conforme se verifica no trecho do acórdão dos embargos infringentes:
Assentado esse ponto, deve-se salientar que o ato espoliativo, consistente na colocação de cercas de forma a impedir o acesso ao caminho objeto, é confirmado pela inspeção judicial (fl. 41) e sequer é controvertido, ainda que a defesa argumente, como visto, que não havia posse, bem ainda considere que há fato superveniente a obstar o acolhimento do pedido.
Por consequência, houve a perda da posse, já que somente pu- deram os autores voltar a usar o trajeto após decisão liminar de reintegração de posse (fls. 99-101).
Verificados, portanto, os requisitos constituintes da reintegração de posse, o que implica, a priori, a procedência da proteção possessória. (e-STJ fl. 955)
Desse modo, incumbe-nos discutir a possibilidade de apreciar, como fato superveniente, uma causa modificativa ou extintiva da servidão de passagem não titulada e aparente, existente sobre o prédio do recorrido.
Quanto ao fato de se tratar de fato superveniente ao ajuizamento da ação possessória, não há qualquer óbice a sua apreciação pelo magistrado. Ao contrário, como afirmado pela Terceira Turma, em recurso por mim relatado, “à luz do disposto no art. 462 do CPC/73, é dever do julgador tomar em consideração fatos supervenientes que influam no julgamento da lide, constituindo, modificando ou extinguindo o direito alegado, sob pena de a prestação jurisdicional se tornar desprovida de eficácia ou inapta à justa composição da lide” (REsp 1637628/ES, Rel. Terceira Turma, DJe 07/12/2018). Da mesma forma, mencione-se outro julgamento desta Terceira Turma sobre esse assunto:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. EXECUÇÃO. ARGUIÇÃO INCIDENTAL DE NULIDADE DA CITAÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DO TRÂNSITO EM JULGADO DE SENTENÇA EM AÇÃO DECLARATÓRIA COM O MESMO OBJETIVO. FATO SUPERVENIENTE. ART. 462 DO CPC. CONSIDERAÇÃO. RESPEITO À COISA JULGADA.
1. O julgamento deve refletir o estado de fato da lide no momento da entrega da prestação jurisdicional.
2. O fato superveniente (art. 462 do CPC) deve ser tomado em consideração no momento do julgamento a fim de evitar decisões contraditórias e prestigiar os princípios da economia processual e da segurança jurídica.
3. No caso dos autos, o fato superveniente – consubstanciado na coisa julgada produzida em lide (ação declaratória) que tramitava paralelamente ao processo de execução que deu origem aos presentes autos – é tema relevante e deve guiar a solução do presente recurso especial sob pena ofensa à coisa julgada.
4. Recurso especial provido para restabelecer a decisão de primeira instância (REsp 911.932/RJ, TERCEIRA TURMA, DJe 25/03/2013)
Neste momento, cumpre ainda examinar a questão da remoção da servidão, ponderada pelo Tribunal de origem no julgamento dos embargos infringentes. De fato, o fato da abertura de nova via, que garante acesso à gleba dos recorrentes, foi suscitado desde o 1º grau de jurisdição, sendo devidamente apreciado desde a sentença (e-STJ fls. 688-708).
A remoção de servidões está disciplinada no art. 1.384 do CC/2002, que amplia o conteúdo do art. 703 do CC/1916, por estender também ao dono do prédio dominante a prerrogativa de remover de local a servidão, se arcar com o custo e se não resultar prejuízo ao titular do domínio do prédio, in verbis:
Art. 1.384. A servidão pode ser removida, de um local para outro, pelo dono do prédio serviente e à sua custa, se em nada diminuir as vantagens do prédio dominante, ou pelo dono deste e à sua custa, se houver considerável incremento da utilidade e não prejudicar o prédio serviente.
Dessa forma, para que o dono do prédio serviente remova a servidão, como na hipótese dos autos, a remoção deve ser feita a suas custas e não deve diminuir as vantagens ao prédio dominante, conforme esclarece a doutrina:
Para o uso da faculdade pelo dono do prédio serviente, basta demonstrar a vantagem na mudança, vantagem que consistirá na redução do ônus ao seu prédio, tornando-o mais produtivo e com menores embaraços ao aproveitamento. Não se reclama, como acontece em algumas obrigações, a prova de determinada causa, para se autorizar a mudança, o que se verificaria exemplificativamente quando a servidão viesse a impedir a realização de obras de melhoramento. Suficiente esclarecer, por meio de elementos concretos, a diminuição de ônus acarretáveis pelo encargo. Assim, todas as hipóteses ensejam a pretensão, desde que resultem na diminuição de obrigação, conforme o princípio de que se deve procurar agravar o menos possível o fundo serviente.
(Arnaldo Rizzardo. Servidões. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed., 2014, p. 117)
A análise feita pelo Tribunal de origem demonstra que todos os requisitos para a ocorrência de uma remoção de servidão foram devidamente preenchidos, como demonstra este longo trecho do acórdão recorrido:
De pronto, saliente-se que a via alternativa foi feita às expensas do réu e do seu esforço, porquanto: (a) não há nada – nem mesmo alegação – de que tal ônus tenha sido suportado pelos autores; (b) os próprios autores desde a exordial noticiaram que ele havia feito isso (fl. 2); e (c) durante o trâmite processual, restou evidente o esforço do acionado em complementar – mesmo que em parte com doação de terras por terceiro – o novo trajeto de forma a permitir a entrada direta às terras de todos os autores, o que restou formalizado junto à municipalidade (fls. 251/403).
Outrossim, embora alegada pelos autores que a alteração no trajeto dificultou o acesso por ser mais longo e com mais obstáculos (aclives, curvas), assim como que gerou desvalorização nas terras, ao examinar detidamente a questão não se constata redução global das vantagens aos donos do prédio dominante.
Da segunda inspeção judicial, extrai-se:
(…) 2) que a via pública principal criada pelo Decreto 079/2007 encontra- se em bom estado de conservação, permitindo acesso por meio de veículo sem maiores dificuldades, com bom tráfego, possuindo largura a permitir trânsito de dois veículos, ressalvando-se a necessidade de manutenção periódica e drenagem lateral, via canaletas evitando-se fissuras na pista em decorrência do escoamento das chuvas; 3) que as duas vias instituídas para acesso ao terreno de Edson e Eunice Alves, assim como Vanda WIleman, possibilitam o ingresso destes em seu imóvel, contudo utilizando-se da parte dos fundos; 4) que o caminho antigo está em pior estado se comparado à via pública, sendo mais es- treito e mais inclinado, contudo permite que o acesso aos autores aconteça pela parte da frente dos seus respectivos imóveis, em que pese neles transite apenas um único veículo;
(…) (fl. 571).
Acrescente-se, outrossim, que quando da realização da inspeção, foi proposto acordo pelo qual o réu cederia, ainda, outra metragem de suas terras para possibilitar o acesso pela parte da frente dos terrenos dos autores (item 5), o que, curiosamente, não foi aceito por estes e não pode, portanto, ser agora sopesado contra o réu.
A partir das fotografias às fls. 88-89 e do vídeo à fl. 200, não há dúvidas de que, mesmo que possa ser um pouco mais longo – o que se vê na fotografia de satélite à fl. 92 -e com aclives um pouco mais pronunciados, é de superior qualidade e porte. E quanto às subidas é necessário registrar que se trata de região que, pelo que se colhe do autuado, é permeada por tal tipo de relevo, de forma que se conclui que aqueles que ali residem ou frequentam estão a isso acostumados.
Vê-se, assim, que o fato superveniente atende, sim, às exigências legais de remoção da servidão, sendo que eventuais pequenos incômodos por parte dos autores são mais do que justificados quando, de outro lado, tem-se que o réu – que se esmerou a todo tempo por viabilizar acesso alternativo – restaria com suas terras divididas ao meio, em evidente diminuição de sua utilização. (e-STJ fls. 956-957)
Ademais, a apreciação da questão da remoção da servidão impõe-se ao julgador, pois não há como corretamente decidir sobre a reintegração de posse, sem considerar a ocorrência deste novo fato, que a alteração da servidão de passagem em discussão.
Dessa forma, o direito à reintegração de posse deve ser harmonizado com os institutos à disposição da defesa nas ações possessórias, que possuem conhecida natureza dúplice. Sobre a natureza dúplice das ações possessórias, a doutrina afirma o seguinte:
Ação dúplice implica, nas ações possessórias – exatamente porque há, pelo menos dois que se pretendem titulares da posse sobre a mesma coisa – ser possível que a proteção seja para o autor, ou, então, que essa proteção venha a agasalhar a situação do réu. E, em virtude disto, cada um dos litigantes pode figurar como autor ou como réu, “ao mesmo tempo” diante da circunstância de terem iguais direitos no campo processual. Ademais, “se não fossem dúplice, o juiz, no caso em que a prova favorecesse o réu, apenas o absolveria, mas não lhe reconheceria a posse, nem condenaria o autor, o que daria lugar à constituição das violências entre os litigantes”.
Implica, a previsão desse caráter dúplice, em não ter cabimento reconvenção, dado que, tudo aquilo que poderia ser pleiteado em reconvenção, deverá ser pedido na contestação, desde que esses pedidos estejam abrigados pela regra do art. 922 do CPC.134 É necessário, para esse caráter dúplice ter significação prática, todavia, que o réu faça pedido de proteção possessória, o que é diferente, e, significa um plus em relação à solicitação da mera improcedência da ação possessória proposta. É lícito ao réu, igualmente, cumular pedido de proteção possessória, na contestação, com o pedido de perdas e danos. (Arruda Alvim. Op.cit., p. 45)
Desse modo, da mesma forma que a usucapião pode ser arguida como matéria de defesa em ação possessória, nada obsta que a remoção da servidão, com o devido preenchimento dos requisitos legais, também seja apreciada pelo julgador.
Forte nessas razões, CONHEÇO do recurso especial e NEGO-LHE PROVIMENTO, com fundamento no art. 255, § 4º, II, do RISTJ.
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. COISAS. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SERVIDÃO DE PASSAGEM. NÃO TITULADA. APARENTE. PROTEÇÃO POSSESSÓRIA. FATO SUPERVENIENTE. REMOÇÃO DE SERVIDÃO. REQUISITOS LEGAIS. PREENCHIDOS. APRECIAÇÃO. POSSIBILIDADE.
1. Ação ajuizada em 17/05/2007. Recurso especial interposto em 28/01/2016 e atribuído a este gabinete em 18/10/2016.
2. O propósito recursal consiste em reconhecer ou não o direito dos Recorrentes relativos à posse sobre uma servidão de passagem instituída de forma aparente sobre imóvel do recorrido. Em especial, deve-se determinar se há possibilidade de, no bojo de ação possessória, discutir a remoção ou extinção de servidão de passagem não titulada, mesmo que apresentada como fato superveniente.
3. Conforme o teor da Súmula 415/STF: “Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória”.
4. À luz do disposto no art. 462 do CPC/73, é dever do julgador tomar em consideração fatos supervenientes que influam no julgamento da lide, constituindo, modificando ou extinguindo o direito alegado, sob pena de a prestação jurisdicional se tornar desprovida de eficácia ou inapta à justa composição da lide
5. Da mesma forma que a usucapião pode ser arguida como matéria de defesa em ação possessória, nada obsta que a remoção da servidão, com o devido preenchimento dos requisitos legais, também seja apreciada pelo julgador.
6. Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 14 de maio de 2019(Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora