Direito Agrário

A alimentação Kosher

Direito Agrário - foto Manuel Masseno

por Rabino Michel Guendler Gruenberg.

 

Coma um terço, beba um terço e deixe o último terço livre; assim, quando tiveres enjôo, terás suficiente espaço em teu estômago

-Talmude da Babilônia, Tratado de Gittin.

1. INTRODUÇÃO

Os judeus, povo milenar que compõe uma das religiões mais antigas existentes no mundo, seguem a risca uma alimentação especial, ordenada no mesmíssimo Pentateuco, que é o Velho Testamento (ou Torá, em hebraico). À ela se dá o nome de “Kashrut“, denominação que encontra raiz etimológica na palavra “Kosher”, significando “limpeza” ou “saudável” em português.

É fato majoritariamente conhecido que os descendentes do Patriarca Israel não comem quaisquer tipos de suínos, porém há diversas outras restrições não conhecidas ao público, como por exemplo o fato dos judeus não misturarem nenhum tipo de carne (à exceção da de peixe) com leite ou outros derivados lácteos, assim como a restrição de ingerir quaisquer frutos do mar ou peixes que não possuam escamas e barbatanas. Vale mencionar que, além do porco, qualquer animal que não possua pata fendida e rumine, concomitantemente, não está apto para o consumo na alimentação Kosher.

Atualmente, muitas celebridades e pessoas de fora da comunidade judaica também seguem certos aspectos desta dieta diferenciada pelo simples fato dela ser o que o nome significa: saudável. Apesar deles não serem comuns no Brasil, há mais restaurantes que servem comida Kosher em Nova York do que aqueles que não o fazem. Aliás, se o leitor já viajou à esta cidade antes, é muito provável que tenha, ainda que por engano, comido em algum deles. A comida é sempre preparada com um cuidado rigoroso, sob a supervisão de uma pessoa que conhece as leis desta dieta à fundo e que, normalmente, possui um diploma rabínico voltado para esta área; à este sujeito se lhe outorga o nome de “Mashguiach”, “supervisor” em português. Ele é o responsável por fazer com que tudo saia de acordo com o estabelecido no Pentateuco.

Para entendermos um pouco mais desta inusitada e um tanto quanto desconhecida forma alternativa de viver (e comer), seria interessante buscarmos as raízes históricas antes de mais nada.

Me acompanhem nesta jornada.

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA DIETA KOSHER.

 

Nas cercanias do ano 1300 antes da Era Comum, Moisés recebeu as Tábuas da Lei no Monte Sinai. Durante os próximos quarenta anos, ele ensinou aos israelitas todas as mensagens que haviam por trás daquele Decálogo, subsequentemente escrevendo a coletânea de cinco livros que compõe a Torá, bíblia judaica que hoje é conhecida pelo mundo como Pentateuco ou Velho Testamento, do qual já falamos.

Dentro destes livros, há a proibição de se ingerir certos alimentos, assim como a permissão para se comer outros. Como já dissemos acima, ficou, daquele momento em diante, proibido abater para consumo próprio ou de outro israelita qualquer tipo de suíno, frutos do mar, insetos de qualquer espécie, répteis e aves de rapina. Além disto, o animal que tem o potencial de se tornar Kosher requer abate especial, denominado de “Shechitá”, do qual falaremos mais para frente. Também é necessário explicar que ao judeu lhe é proibido ingerir qualquer tipo de sangue.

Com o passar dos anos, os diversos rabinos que vieram nas próximas gerações se dedicaram a pautar todas as minucias da dieta, inclusive adicionando proibições ou costumes que não estavam claras no Pentateuco.

Após a expulsão dos judeus da Terra de Israel, ao redor do ano 76 da Era Comum, com a dispersão destes pela terra, as diferentes comunidades começaram a praticar distintos costumes, cada um de acordo com seu rabino local. Claro que todos eles tinham em comum o respeito à norma original, prevista no ordenamento já mencionado.

Ao redor do ano 1135 nascia, em Córdoba, na Espanha, um líder espiritual que seria o responsável por juntar, por primeira vez, todas as discussões dos rabinos da época, especialmente aquelas que versavam sobre a Kashrut. O nome dele era Rabino Moisés filho de Maimon, e ficou conhecido pelo mundo todo como Maimonides. Há chances de que o leitor já tenha ouvido falar nele.

Além de médico brilhante, este ilustre sábio explicou diversas doenças e o porquê delas ocorrerem, muitas vezes ligando-as a fatores alimentícios do afligido. Através de suas mãos, tivemos alguns dos conselhos de nutrição mais inovadores da época, como por exemplo o fato dele desencorajar o consumo de alimentos deixados por largos períodos de tempo debaixo do sol ou em estado de putrefação, prática que era comum então e que hoje se sabe ser a causa de muitas doenças
que dizimaram centenas de milhares de pessoas no medievo. Um dos casos mais curiosos foi o fato dele afirmar, claramente, que as frutas devem ser sempre ingeridas, preferencialmente, antes da carne, e que devemos escolher frutas cítricas. Este recado era especialmente importante para pessoas que se encontravam à base de uma dieta hiper proteica, como os marinheiros da época, que comiam, normalmente, apenas carne seca preparada para as longas viagens em alto mar. Hoje se sabe que a causa da doença chamada de Escorbuto, razão da morte de inúmeros seres humanos, é a ausência da Vitamina C, presente especialmente nos frutos cítricos.

Um fator interessante sobre a dieta Kosher é que nem sempre ela pauta somente o que comemos, mas, também, como devemos comer. É obrigatório ao judeu abluir suas mãos antes das refeições que contenham pão (basicamente todas). Isto evitou que centenas de milhares de israelitas que moravam no norte e leste europeu (denominados “ashkenazitas”) contraíssem a terrível peste bubônica (negra). Infelizmente, isto gerou um problema muito sério: os cidadãos da época de fora da comunidade, ao perceberem que seus companheiros judeus não contraíam a enfermidade, acreditaram piamente que eles eram bruxos ou coisa pior e muitas vezes os mandavam para a fogueira.

Com o passar dos séculos, especialmente após o ano 1563, quando o Rabino Joseph Caro publicou seu livro denominado “Shulchan Aruch” (“Mesa Posta” em português), que engloba absolutamente todas as regras e minucias sobre a vida judaica, os hebreus passaram a ter costumes mais generalizados em vez de cada comunidade fazer de acordo com o que entendia seu rabino. Atualmente, apesar de haver diferentes grupos de judeus, como os Sefaraditas, aqueles que vieram
dos países arábicos ou da Espanha e Portugal, ou os Ashkenazitas, que já mencionamos, habitantes da Alemanha, Polônia, Rússia e Leste Europeu, a diferença na prática alimentar não é extremamente diferente.

Na era da globalização, isto acabou ficando ainda mais homogêneo. Hoje, se um judeu tem uma dúvida de como deve praticar certo ato na sua cozinha ou se certo alimento está autorizado para consumo ou não, basta que ele procure seu rabino de confiança mais próximo ou mande um e-mail para algum grande chefe de corte judaica.

3. KASHRUT NA PRÁTICA

 

Vamos ao coração do artigo. Quais são, basicamente, as regras ainda não mencionadas da Dieta Kosher e como são aplicadas as verificações.

Primeiramente, cabe destacar todas as proibições acima mencionadas: judeus não comem suínos, répteis, insetos, aves de rapina, frutos do mar ou peixes de couraça. Aparte disto, o gado deve ser abatido da forma ritualmente correta pelo processo já mencionado de Shechitá. Neste, é vedado fazer com que o bicho sofra mais do que o necessário; choques, tiros, danos corporais ou bordoadas desqualificam-no ao consumo. O único jeito viável da carne estar aprovada é matar o animal com uma faca de formato retangular, sem ponta, extremamente afiada, com um só corte que englobe cinco pontos do pescoço dele, passando pela jugular, outorgando-lhe uma morte rápida e, dentro do possível, indolor. Depois do ato de abatimento, o corpo é revisado em cada cavidade e órgão para se constatar se não há nenhuma doença, corpo estranho ou deformação que invalide a carne. Após este procedimento, é separada a décima terceira costela, assim como o nervo ciático, do resto do corpo. Estas duas partes são descartadas pois, segundo a religião judaica, é proibido come-las pelo motivo de que o Patriarca Jacó (Israel) foi tocado pelo Anjo da Morte em seu próprio nervo, dando origem à restrição.

Quando tudo isto é terminado, a carne ainda não está pronta. Ela tem de passar por outro processo, este chamado de Melichá (“salgação” em português), onde ela é salgada com sal de grana média até que a vasta maioria do sangue saia, visto que este é proibido para o consumo do judeu. O peixe não precisa de nenhum destes procedimentos. Basta que ele tenha escamas e barbatanas e já está pronto para ser ingerido.

Outro aspecto interessante, especialmente para o leitor que é produtor agrário, é a supervisão requerida para o queijo e o vinho, a fim de que eles possam ser consumidos.

Durante muitos anos, era comum que o coalho fosse feito através do esfacelamento de um estômago de boi ou vaca. Se moía o órgão rico em enzimas que endureciam ou fermentavam queijo e logo se atirava na tina onde o leite estava repousando. Haviam, também, aqueles que simplesmente vertiam leite dentro de um estômago ressecado de rés, buscando o mesmo efeito mas em proporções menores. À este material ou prática se deu o nome de Coalho Bovino e ainda pode ser encontrado em zonas rurais, mas em menor escala, visto que hoje é mais fácil utilizar ingredientes químicos.

Por este motivo, o queijo requer uma verificação mais rigorosa. O Mashguiach (supervisor) deve se certificar de que em momento algum se está colocando dentro do leite fermentado qualquer tipo de ingrediente não permitido.

Já o vinho requer uma supervisão ainda mais profunda e perfeccionista. Antigamente, a grande maioria da bebida alcoólica em questão produzida ao redor do mundo era destinada, em específico, para cerimonias pagãs dos povos politeístas. Por ordem de Deus, os judeus deveriam, sempre, estar distanciados destas práticas de idolatria. Ficava, então, proibido qualquer tipo de alimento ou ingrediente que fosse utilizado (ou sequer preparado) para festas de louvação a deuses estranhos. Hoje em dia, para que se produza o vinho Kosher, é necessário que o supervisor controle e tome parte ativa no processo, recolhendo ele mesmo o sumo da uva, não deixando que ninguém (até mesmo outro judeu) coloque as mãos no mosto ou no vinho até que o produto seja terminado. Quando este é terminado, pode passar por dois processos: caso ele for fervido (através de um processo chamado de “Bishul”, “cocção” em hebraico), os cuidados com o produto final são menores e ele pode ser servido em qualquer lugar. Caso não o seja, dando origem ao termo “Não Mevushal”, apenas um supervisor (Mashguiach) ou outro judeu ortodoxo pode manusear ele. Graças a estas restrições impostas à este segundo tipo, a vasta maioria dos vinhos são fervidos após ficarem prontos.

Outro tema interessante é a questão do pão. Apesar da norma judaica (chamada de Halachá) ser bastante rigorosa (como já vimos), ela é leniente no pão, pois baseia-se na máxima de que: “Sobre o Pão viverá o Homem”, sendo ele alimento indispensável para a nutrição. Por este motivo, é permitido que o judeu coma, numa cidade onde não há a versão Kosher, o pão comum de padaria, contanto que ele saiba que nenhum tipo de gordura ou ingrediente estranho foi colocado na massa ou no forno com certa antecedência.

Cabe destacar que quaisquer alimentos industrializados devem ser supervisionados durante o processo de fabricação. O Supervisor deve se certificar de que nenhum tipo de alimento proibido está sendo colocado dentro do produto final e que a fábrica não mexa diretamente, na mesma linha de produção, com produtos que não são próprios para o consumo Kosher.

Alimentos crus, como frutas e legumes, não precisam de supervisão de um técnico especializado em lei judaica e podem ser comprados em qualquer lugar. Porém, ao chegar em casa, o judeu deve revisar estes a fim de que não encontre neles quaisquer tipos de insetos.

Finalmente, azeites extra-virgem e outras bebidas alcoólicas (com exceção do vinho ou de outras bebidas derivadas da uva, incluindo o suco) normalmente estão sempre autorizados.

4. COMO OBTER UM CERTIFICADO KOSHER NO BRASIL

Muitos produtores rurais à esta altura do campeonato devem estar se perguntando: “Como eu consigo certificar meus produtos?”

Para que isto ocorra, é necessário, primeiramente, entrar em contato com um dos órgãos judaico ortodoxos do Brasil (nenhum tipo de supervisão não ortodoxa é aceita para o público que segue a Dieta Kosher). Há algumas cortes rabínicas legais que estão autorizadas a ceder este documento. Logo destarte a corte irá mandar um supervisor de confiança que inspecionará o local de produção do alimento. Há casos em que não há possibilidade de se “kasherizar” o estabelecimento por motivos de infraestrutura, mas são raros, especialmente com a tecnologia de hoje em dia. Normalmente, com um pouco de tempo se consegue entrar nos padrões. Não necessariamente o produtor precisa, de agora em diante, fabricar apenas produtos certificados. Conquanto ele separe bem as linhas de produção, tomando as devidas precauções de que uma não se misture com a outra, há a opção de manter ambas.

Após o supervisor dar o seu visto, pode-se começar a produzir. Há uma taxa a se pagar, pois é necessário cobrir os custos e o salário dos funcionários envolvidos.

Quando o processo for terminado, os produtos que estão de acordo com os limites impostos pela lei judaica serão agregados aos sites e livros que informam todos os itens autorizados atualmente para que aqueles que seguem este tipo de alimentação possam comprar.

Apesar das limitações serem grandes, o procedimento é muito mais fácil do que parece e, hoje, muitas empresas tem aderido aos padrões da dieta em questão para ampliar seus mercados.

5. CONCLUSÃO: POR QUE ESCOLHER UM ALIMENTO OU A DIETA KOSHER?

Para concluir esta breve dissertação (bem, breve se compararmos com todas as minucias da dieta Kosher), nada melhor do que apontar as benesses que tal alimentação pode trazer.

Em primeiro lugar, todos os alimentos que apresentam certificado de Kashrut (muitas vezes você já ingeriu um e não sabe, pois uma boa variedade deles está disponibilizada nos supermercados comuns) passam, por óbvio, por uma supervisão não somente religiosa, mas também sanitária mais aprimorada. Um legume que já vem com o selo Kosher é completamente seguro e livre de vermes ou outros insetos.

Outro grande benefício é saber a procedência e os ingredientes exatos do item. Temos, anualmente, diversos casos no Mundo de pessoas que processam as empresas produtoras pois venderam um produto alterado, vencido ou que possuía algum alergênico não destacado no rótulo. No caso dos alimentos Kosher, você paga pelo que você leva, sem ter que se preocupar com a adição de outros itens não listados no rol disponível na embalagem. Como há um supervisor especializado verificando o procedimento, as chances de alguém adulterar um ou mais itens é baixíssima.

Finalmente, falando especificamente na Dieta em si, saiba que a Kashrut tem se revelado cada vez mais inteligente aos olhos dos grandes médicos da atualidade. Já está mais do que provado que a mistura da carne com o leite é danosa à digestão, pois a carne demora muito mais tempo em ser digerida que o leite. Quanto ao porco, propriamente dito, diversas doenças podem aparecer graças ao consumo irresponsável deste, especialmente se a carne não for tratada antes. Frutos do mar podem ser letais, também, se infectados. Um envenenamento por ostra não é nada incomum de acontecer e pode levar, muitas vezes, à morte.

Fora isto, judeus tendem a deixar a carne vermelha para os finais de semana apenas, contentando-se com carne branca ou peixes durante os dias úteis, visto que  é uma boa ação dentro do judaísmo deixar um alimento especial para o dia sabático (Shabbat, em hebraico), o que faz com que haja um balanceamento quase sempre perfeito nas proteínas.

A Kashrut, assim como o judaísmo em geral, dá grande ênfase no ato de cuidar do próprio corpo, considerando-o “um empréstimo feito por Deus ao Homem”. Por este motivo, ela desencoraja comer em excesso sob quaisquer circunstancias. Isto se aplica, também, ao álcool. Apesar de não haver quaisquer proibições ao consumo deste (além das impostas pela Dieta Kosher), a lei judaica proíbe o ato de embebedar-se por motivos de saúde e ética pessoal. Fumar, também, é mal visto pelos grandes rabinos da atualidade, pois põe o corpo em risco.

Por estas e outras, dê preferência para aquilo que você tem garantia. Citando um exemplo, se uma pessoa para para abastecer seu carro, é óbvio que ela não irá escolher uma gasolina com impurezas dentro. Assim também é o corpo humano, devemos sempre comprar nossos alimentos nos lugares onde sabemos a procedência. Ninguém aceitaria comprar uma carne estragada ou um vegetal com vermes.

Escolha com sabedoria. Lembre-se, carros teremos vários, se Deus quiser, mas corpo só temos um.

[AGRADECIMENTOS: Gostaria de agradecer a Deus, Todo Poderoso, que me auxiliou nestas breves palavras; logo, aos meus pais, Dr. Wolf e D. Betty Gruenberg pelo apoio, assim como ao excelentíssimo Professor Albenir Querubini pela oportunidade em escrever neste meio de comunicação. Que o Patrão de Cima sempre lhes mande tudo em abundância.]

O Rabino Michel Guendler Gruenberg é formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (formandos de 2017), aonde também faz parte dos Grupos de Estudos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e de Genocídios. Recebeu sua ordenação rabínica em Setembro de 2016, esta é validada pela Corte Rabínica Ortodoxa do Brasil e da Argentina, com competência mundial. Também é autor do livro Tradição Centenária, Primeiro Manual de Prataria e Cutelaria Riograndense, publicado em 2016, e da Tese da Pena Imediata, que será publicada no
início de 2018.

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