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Direito Agrário

Ilícitos agrários: danos causados por MST em área invadida serão apurados e donos indenizados, define o STJ

“Em julgamento de recurso especial, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu os prejuízos sofridos por proprietários de uma fazenda do Paraná, invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), e acolheu pedido de reintegração de posse cumulado com indenização por perdas e danos.

De acordo com o processo, a fazenda, localizada no município de Manoel Ribas (PR), foi invadida em 2003 e ocupada por aproximadamente 600 famílias do MST. Dentro da propriedade, além de ocuparem os imóveis da fazenda, foram instalados acampamentos.

Os proprietários ajuizaram ação de reintegração de posse contra os invasores, com pedido de indenização pelos prejuízos sofridos. A reintegração de posse foi garantida por liminar, mas essa decisão só foi cumprida um ano e meio depois de prolatada a sentença, por meio de força policial, devido à resistência dos invasores.

Danos pormenorizados

O pedido de indenização por perdas e danos, entretanto, foi indeferido. O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) reconheceu que os invasores deveriam ser responsabilizados pelos danos causados, mas esses prejuízos deveriam ter sido pormenorizados na ação, uma vez que não se pode presumir.

No STJ, o relator, ministro Raul Araújo, entendeu pela reforma da decisão. Ele destacou que os proprietários, além de elencarem na ação todo o patrimônio constante da fazenda, das benfeitorias e maquinários ao número de cabeças de gado, também relataram em juízo depredações, morte de parte do gado e comprometimento da terra para plantio.

Para Raul Araújo, ‘é evidente que a violenta ação desencadeada pelos réus-invasores causou gravíssimos prejuízos materiais aos proprietários, tanto em razão de atos destrutivos de bens, como em função da longa privação do empreendimento tomado à força. Resta, portanto, apenas apurar-se o montante do prejuízo, mas a existência deste, nas circunstâncias, é inegável’.

O colegiado, por unanimidade, determinou que a apuração do valor devido aos proprietários da fazenda seja feita por liquidação de sentença, nos próprios autos”.

Processo: REsp 896961

Fonte: STJ, 18/05/2016.

Direito Agrário

Confira a íntegra da decisão:

RECURSO ESPECIAL Nº 896.961 – PR (2006/0233698-8)

RELATOR : MINISTRO RAUL ARAÚJO

RECORRENTE : MERCEDES SALDANHA LOURES FARIA DE LACERDA E OUTRO

ADVOGADO : MARLUS FABIANO SIGWALT

RECORRIDO : ANTÔNIO DOS SANTOS DESPLANCHES E OUTRO

ADVOGADO : GISELE LUIZA BRITO DOS SANTOS CASSANO E OUTRO(S)

 

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO: MARIA DAS MERCÊS LOURES DE LACERDA e OUTRA ajuizaram ação de reintegração de posse em desfavor de ANTÔNIO DESPRANCHES e OUTROS (demais supostos invasores não identificados), na qualidade de proprietária e possuidora, a primeira, e possuidora usufrutuária, a segunda, de um imóvel rural denominado Fazenda José Bernardo, conhecida também como Fazenda Três Marias, no Município de Manoel Ribas, no Estado do Paraná.

Informa a inicial que, não obstante a intensa produtividade do imóvel e a sua relevante função social, este foi esbulhado, em maio de 2003, quando aproximadamente 600 famílias, integrantes do Movimento dos Sem Terra, invadiram-no com caminhões e automóveis, após o que passaram a instalar acampamentos e invadir todas as casas da sede da fazenda, inclusive portando armas brancas e de fogo, e procedendo à matança de mais de cem animais.

Na peça inaugural, foi requerida a medida liminar de reintegração de posse, além de constar pedido de indenização dos prejuízos sofridos com o esbulho e desfazimento de tudo o que fora construído ou plantado em detrimento da posse, nos termos do art. 921 do CPC/73.

Deferida a reintegração liminar da posse (fls. 139/143), a medida não foi efetivada até a prolação da sentença – o que ocorreu quase um ano e meio após a concessão da liminar – por ocorrência de sério confronto com os invasores, tendo sido necessária utilização de força policial para tentativas de cumprimento do mandado liminar.

A r. sentença julgou parcialmente procedente o pedido para reintegrar as autoras na posse do bem imóvel, porém, em relação ao ressarcimento de eventuais danos causados ao patrimônio, entendeu que “tal responsabilização deve ser objeto de ação própria, onde se possa averiguar a existência e extensão dos danos causados, o que não pode ser objeto deste procedimento especial de reintegração de posse” (fls. 641/651).

Inconformadas com parte da sentença, as autoras interpuseram recurso de apelação, ao qual o eg. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por maioria, negou provimento, em aresto assim ementado:

“APELAÇÃO CÍVEL -REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS – FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO – ÔNUS DA PARTE AUTORA – INEXISTÊNCIA DE PROVAS REFERENTE AOS DANOS MATERIAIS ALEGADOS. 1. Segundo a inteligência do artigo 921 do Código de Processo Civil para haver cumulação do pedido de indenização é necessário provar a existência dos danos alegados, porquanto insuficiente a indicação genérica. 2. Os danos decorrentes do reclamado esbulho possessório devem ser pormenorizados e seus danos provados no curso do processo de conhecimento, vez que os mesmos não se presumem. 3. Compete ao autor a prova dos fatos constitutivos do seu direito (art. 331, I do Código de Processo Civil), e nesse aspecto o autor deixou transcorrer “in albis” o processo sem promover a necessária produção de provas dos danos decorrentes do esbulho. APELAÇÃO CONHECIDA E NÃO PROVIDA, POR MAIORIA.” (fl. 747)

Ainda inconformadas, as autoras interpuseram o presente recurso especial, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, sustentando violação ao art. 921, I, do CPC/73, bem como dissídio jurisprudencial.

Sustentam as razões recursais o seguinte, verbis:

“Portanto, sendo a cumulação dos pedidos, reintegração de posse e perdas e danos, perfeitamente cumuláveis consoante determinação do artigo 921 do Código de Processo Civil, e as perdas e danos devidamente demonstradas à época da invasão, não há que se falar na impossibilidade de cumulação dos pedidos bem como na impossibilidade de serem liquidados por sentença os danos sofridos.

Permissa venia, as perdas e danos previstas no artigo 921, inciso I do CPC, foram demonstradas juntamente com a peça exordial onde foi requerido o pedido cumulado.

Ademais, cabe ressaltar que por todo o período em que a propriedade estava esbulhada, as autoras deixaram de perceber os frutos dali decorrentes (lucros cessantes).

Venia concessa, negar a cumulação dos pedidos ou negar a condenação dos réus nas perdas e danos, é afronta direta a Lei Federal, consoante denota o artigo 921, inciso I do CPC.

(…)

Frise-se, que não há qualquer possibilidade de apurar os danos sofridos de forma pormenorizada, como pretende o V. acórdão, pois as áreas rurais invadidas são inacessíveis a qualquer cidadão que não pertença ao grupo de esbulhadores.

Embora haja prova nos autos dos danos sofridos com a invasão, trata-se de prova impossível, e tal impossibilidade de produzir-se os danos exatamente suportados pelas partes, como pretende o V. acórdão combatido, não retira a aplicabilidade da Lei Processual Civil que admite através do artigo 921, inciso I do CPC a cumulação dos pedidos nas ações possessórias.” (fls. 775/776)

Apresentadas contrarrazões (fls. 827/832), o recurso foi admitido (fls. 842/852) e encaminhado a esta Corte.

É o relatório.

 

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO (Relator): De início, ressalte-se que o presente recurso especial não merece ser conhecido pelo alegado dissídio jurisprudencial, ante a diversidade de bases fáticas entre os julgados em confronto.

Com efeito, da análise das decisões judiciais colacionadas pelas recorrentes, verifica-se que nenhuma delas tem similitude com a hipótese dos autos, pois o que está em questão não é a possibilidade de cumulação dos pedidos possessório e de perdas e danos, ou a autoridade da coisa julgada no processo de conhecimento, temas abordados nos arestos apontados como paradigmas.

Igualmente, o tema em discussão no presente recurso especial não diz respeito à procedência da ação de reintegração de posse, tanto que não houve recurso de apelação ou recurso especial por parte dos promovidos, sucumbentes nesta parte da demanda.

A questão ora em debate circunscreve-se ao ponto referente à necessidade de que, no caso específico, o deferimento do pedido cumulado sujeite-se à existência de provas suficientes nos autos, tendo as razões recursais apontado como violado o art. 921, I, do CPC/73, que possuía a seguinte redação:

Art. 921: “É lícito ao autor cumular ao pedido possessório o de:

I – condenação em perdas e danos;

II – cominação de pena para caso de nova turbação ou esbulho;

III – desfazimento de construção ou plantação feita em detrimento de sua posse”

A r. sentença assim decidiu quanto ao ponto:

“Quanto ao ressarcimento de eventuais danos causados ao patrimônio das autoras, evidente que os réus devem por eles responder, pois eventuais danos foram consequência de um ato ilegal (invasão), recaindo sobre os réus a responsabilidade aquiliana, na qual todo aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência causar dano a outrem está obrigado a reparar o dano causado.

Ocorre, contudo, que tal responsabilização deve ser objeto de ação própria, onde se possa averiguar a existência e extensão dos danos causados, o que não pode ser objeto deste procedimento especial de reintegração de posse.” (fl. 650)

Por sua vez, o eg. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por maioria, confirmou a sentença adotando a seguinte fundamentação para julgar improcedente a pretensão indenizatória:

“Segundo a inteligência do artigo 921 do Código de Processo Civil para haver cumulação do pedido de indenização é necessário provar a existência dos danos reclamados, porquanto insuficiente a indicação genérica de que o esbulho causou danos.

Os danos decorrentes do esbulho possessório devem ser pormenorizados e provados no curso do processo de conhecimento, vez que os mesmos não se presumem.

Ademais, a indicação de que o esbulho possessório teria causado danos ao imóvel, sem a efetiva comprovação de sua ocorrência, não é suficiente para configurar a condenação por perdas e danos.

(…)

É cristalino que compete ao autor a prova dos fatos constitutivos do seu direito (art. 331, I do Código de Processo Civil), e nesse aspecto as autoras deixaram transcorrer “in albis” o processo, sem promover a necessária produção de provas dos danos decorrentes do alegado esbulho, tampouco atacaram no recurso de apelação eventual prejuízo com o julgamento antecipado da lide.

Acrescente-se que as autoras em nenhuma oportunidade diligenciaram para que fosse realizada prova demonstrando os fatos narrados na inicial, em especial a existência dos animais e das benfeitorias feitas no imóvel esbulhado.

Assim, em se tratando de danos decorrentes do esbulho é preciso prova inequívoca dos prejuízos sofridos em decorrência da ocupação bem como da extensão dos mesmos, caso contrário inadmissível procedência do pleito indenizatório.

(…)

Por derradeiro, como já expôs o juiz singular, eventuais danos ocasionados pelo alegado esbulho possessório devem ser pleiteados em ação própria, oportunidade em que deverão realizar a precisa indicação dos danos e sua extensão, com amplo contraditório e ampla dilação probatória.

Considerando, pois: (a) a necessidade de prova efetiva dos danos reclamados e de sua extensão; (b) ser o ônus de prova referente aos fatos constitutivos, danos resultantes do alegado esbulho possessório, atribuído às autoras; (c) a carência de prova efetiva dos danos materiais, o voto é pelo conhecimento e desprovimento do recurso deduzido por Mercedes Saldanha Loures Faria de Lacerda e Maria das Mercês Loures de Lacerda, confirmando integralmente a sentença de primeiro grau.” (fls. 754/759)

Pela simples leitura da norma, data venia, constata-se que as instâncias de origem, ao afirmarem que “eventuais danos causados ao patrimônio das autoras devem ser objeto de ação própria onde se possa averiguar a existência e extensão dos danos causados, o que não pode ser objeto deste procedimento especial de reintegração de posse” , negaram vigência ao art. 921, I, do CPC/73.

É inegável competir ao autor a prova dos fatos constitutivos do seu direito (art. 333, I, do CPC/73), tal como afirmado pelo v. aresto recorrido.

Porém, como se extrai indubitavelmente dos autos, o caso em comento diz respeito a conflito fundiário, com invasão de terras promovida por integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) no Estado do Paraná à época, fato público e notório (cf. fls. 128/129 e 437/438), com dificuldade quase intransponível no cumprimento do mandado liminar de reintegração de posse (cf. fls. 146, 484/485, 496 e 513), o qual só foi cumprido com a prolação da sentença de procedência da reintegratória, quase um ano e meio após, tendo sido acionada inclusive a Polícia Militar para tentativa de cumprimento da ordem judicial.

Com a inicial, as autoras explicitaram as áreas da fazenda destinadas à agricultura (milho, soja e batata) e às pastagens cultivadas, com o número de cabeças de gado das raças Cacthin e Nelore, comprovando as afirmações por meio de documentos (Controle de Movimentação de Bovinos) e ofícios expedidos pelo INCRA.

Explicitaram e comprovaram, outrossim, a parte do imóvel que estaria arrendada para cultivo, além das benfeitorias (casas da sede e casas de empregados, depósitos e galpões para abrigo de equipamentos, barracão para carpintaria e açougue, cercas de divisa, currais, balanças, pulverizadores e uma piscina com instalações completas de filtragem).

Ao longo do ano e meio de tentativas de cumprimento da liminar e de citação dos réus, as autoras informaram, pormenorizadamente, ao Juízo, a depredação de benfeitorias no imóvel e de maquinário existente na fazenda, bem como a morte de parte do gado, além de a situação impedir o plantio para nova safra (cf. fls. 309/311), causando transtornos aos arrendantes da terra.

Informaram também os insistentes requerimentos de medidas urgentes às autoridades policiais, que, entretanto, foram infrutíferos.

Saliente-se que, nem mesmo na contestação oferecida pelos invasores (fls. 524/541) foi impugnada a ocorrência notória de perdas e danos, ao contrário, foi ressaltada apenas a “amplitude e gravidade” do litígio.

É evidente que as autoras observaram o dever insculpido no já mencionado art. 333, I, do CPC/73, dentro dos limites que a situação de fato permitia, desincumbindo-se do ônus da prova dos fatos constitutivos de seu alegado direito à indenização pelas perdas e danos sofridos com o esbulho.

É importante, neste ponto, a transcrição do d. voto vencido, que dava provimento à apelação das autoras quanto ao pleito indenizatório:

“Por outro lado, além de constranger as autoras a suportar uma invasão e ingressar com ação de reintegração de posse, quando a questão tem mais caráter criminal do que civil, inflige-lhes a obrigação de, aprioristicamente, contar com alguma vidente, dotada de bola de cristal, para estimar o quantum dos prejuízos de forma a auxiliar o advogado na confecção de sua petição inicial, sob pena de compulsório fracionamento das pretensões que, por lei, merecem cumulação.

Aliás, é da tradição do nosso direito a possibilidade de cumulação de pedidos, como se pode observar do disposto no art. 921 do Código de Processo Civil; portanto, a decisão que reintegra não é completa se não inclui a condenação em perdas e danos, em favor daquele a quem se reconhece a posse.

(…)

Diante disso, em nome da efetividade e da instrumentalidade, não vejo porque criar dificuldades processuais às autoras para que possam encontrar, em simples liquidação de sentença, o quantum da indenização a que fazem jus, mesmo porque antes da efetiva desocupação do imóvel esbulhado, fruto de invasão criminosa, não se poderia estimar as deteriorações sofridas e as perdas e danos, conforme dicção da lei acima mencionada.

Registre-se que o pedido de perdas e danos restou incontroverso, pois não houve contestação neste sentido, e desde a inicial já se informava a morte de cem (100) bovinos, sendo certo que a desocupação somente ocorreu em agosto de 2004, perfazendo dezesseis (16) meses de invasão, de consequência somente esta circunstância já demonstra que os prejuízos eram presumíveis, bem como está delineado e provado o an debeatur, restando estabelecer-se somente o quantum debeatur em liquidação de sentença.

Acentue-se que a propriedade rural foi invadida sem qualquer reação da autoridade competente, aliás, mesmo depois de ordenada a reintegração, o grupo invasor contou com a complacência do Estado do Paraná, através de seus diversos governos, eis que jamais foi cumprida a ordem judicial.

Diante disso, admissível a fase de liquidação de sentença para se fixar a importância da indenização, na qual se deve atender não somente aos prejuízos e perdas sofridas já anunciados, como também os lucros cessantes.

A indenização será a mais completa possível, levando-se em conta os lucros cessantes que, logicamente, só terminam com a desocupação da fazenda que jamais poderia ser prevista na inicial, haja vista a imprevisibilidade da interrupção da ilicitude consumada sob o beneplácito governamental.

A decisão da douta maioria, a toda vista, carregada de excessivo rigor, cria embaraços aos autores para buscar a devida indenização, inclusive contra o Estado que, por inércia culposa ou dolosa, já que estimulante da ilicitude, foi o maior causador dos prejuízos, cuja reparação, seguramente, não será prestada pelos invasores.

Acentue-se que um ano depois da invasão, em 18 de maio de 2004, a própria Polícia Militar do Estado do Paraná informou que a propriedade estava ocupada por aproximadamente 2.000 pessoas (f. 321), sendo certo que a citação foi feita de forma oral e pública aos invasores, pelos Oficiais de Justiça, no dia 15 de junho de 2004, quando a desocupação da terra restou inexitosa, não obstante a presença da Força Pública (f. 432-433).

Por isso, votei vencido.” (fls. 761/765)

De um lado, é certo que, para haver cumulação do pedido de indenização, é necessário provar a existência dos danos alegados, nos moldes do art. 333, I, do CPC/73. Na doutrina, no ponto, colhem-se os ensinamentos de Adroaldo Furtado Fabrício:

” O pedido é de condenação, e pode ser formulado em quantia certa ou pelo que se venha a apurar em liquidação, como se verifica nos pedidos indenizatórios em geral. Também segundo os princípios gerais, só o quantum debeatur pode ter sua apuração relegada à liquidação futura: a prova da existência do dano tem de fazer-se no processo de conhecimento, para que a condenação possa ser proferida.” (in Comentários ao Código de Processo Civil, volume VIII, Tomo III, 3a. ed., Forense, 1988, pág. 396)

Por outro lado, exigir, tal como o fez o v. aresto recorrido, atitude outra além daquela tomada pelas autoras, no caso concreto e específico dos autos, é fazer letra morta do art. 921, I, do CPC/73.

Com efeito, negar o pedido indenizatório sob a afirmação de que os danos decorrentes do reclamado esbulho possessório deveriam ser pormenorizados e provados no curso do processo de conhecimento, uma vez que não se presumem, significa, no presente caso, negar a licitude da cumulação do pedido possessório com o de perdas e danos, bem como a ampla reparação dos notórios prejuízos sofridos pelas autoras, tal como relatado.

Ainda no campo doutrinário, são relevantes, na hipótese, as seguintes ponderações de J. E. Carreira Alvim:

“Se o possuidor, autor da ação, possuir os elementos que lhe permitam determinar, desde logo, a extensão dos danos causados pela ofensa à posse, deverá minudenciá-los na petição inicial, para que a indenização seja fixada na própria sentença, mas, como não sabe o autor se obterá uma liminar antecipatória do seu alegado direito, e, muito menos, quando será proferida a sentença, ainda sujeita a recurso de duplo efeito, poderá requerer que as perdas e danos sejam objeto de apuração em liquidação da sentença (arts. 475-A a 475-H), inclusive a por artigos (art. 475-E), o que remeterá o quantum da indenização para a fase imediatamente anterior ao cumprimento da sentença.” (in Comentários ao Código de Processo Civil Brasileiro, volume 13, Curitiba, Juruá editora, 2011, pág. 920)

Em lúcido parecer, o d. órgão do Ministério Público do Estado do Paraná opinou de forma bastante pertinente à situação dos autos, motivo pelo qual o transcrevo na seguinte parte, verbis:

“Da leitura da exordial constata-se que o pedido de indenização pelas perdas e danos não foi feito de modo certo e determinado eis que o ato ilícito ainda vinha sendo praticado além de não ser possível prever à época as consequências prejudiciais do esbulho. Entretanto, apesar de não estarem precisamente quantificados, restaram provados alguns dos prejuízos até então causados, como a quebra de contratos de parceria rural (fls. 75/79v); notando-se, ainda, que de acordo com Laudo Técnico elaborado pelo INCRA (fls. 59/71) no imóvel esbulhado havia plantações que rendiam cerca de 65 toneladas de grãos, além de haver ali um efetivo pecuário no montante de aproximadamente 2.500 cabeças.

Ainda, da análise do caderno processual, verifica-se que não se mostra viável a obtenção da exata definição do quantum indenizatório unicamente com base nos elementos já constantes dos autos. Deste modo, se mostra imprescindível a realização do procedimento de liquidação previamente à execução do decisum, especificamente no que se refere à condenação da parte ré pelas perdas e danos ocasionadas, em conformidade com o artigo 603, do Código de Processo Civil.

(…)

Por conseguinte, tratando-se o presente caso de indenização de danos materiais não quantificados até a prolação da sentença na ação de conhecimento, se mostra imprescindível a realização do processo de liquidação da sentença (que é regido por regras próprias e dotado de autonomia em relação ao processo de conhecimento), o qual se dará nestes mesmos autos. Logo, merece reforma a r. sentença apelada no ponto em que entendeu dever a liquidação do quantum indenizatório ser feita em ação própria e não neste procedimento especial de reintegração de posse.” (fls. 733/734)

Tratando-se de um imóvel rural produtivo, é evidente que a violenta ação desencadeada pelos réus-invasores causou gravíssimos prejuízos materiais aos proprietários, tanto em razão de atos destrutivos de bens como em função da longa privação do empreendimento tomado à força. Resta, portanto, apenas apurar-se o montante do prejuízo, mas a existência deste, nas circunstâncias, é inegável.

Ao julgar que não houve prova da ocorrência dos danos e, por isso, não admitir a cumulação dos pedidos de reintegração com indenização, o v. aresto recorrido incidiu em negativa de vigência ao art. 921, I, do CPC/73.

Por todo o exposto, conhece-se do recurso especial por violação ao art. 921, I, do CPC/73 para lhe dar provimento, reconhecendo-se a ocorrência dos danos causados pelos promovidos ao patrimônio das autoras, devendo proceder-se à apuração do quantum debeatur em liquidação de sentença, nos próprios autos.

É como voto.

RECURSO ESPECIAL Nº 896.961 – PR (2006/0233698-8)

RELATOR : MINISTRO RAUL ARAÚJO

RECORRENTE : MERCEDES SALDANHA LOURES FARIA DE LACERDA E OUTRO

ADVOGADO : MARLUS FABIANO SIGWALT

RECORRIDO : ANTÔNIO DOS SANTOS DESPLANCHES E OUTRO

ADVOGADO : GISELE LUIZA BRITO DOS SANTOS CASSANO E OUTRO(S)

 

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL. IMÓVEL RURAL PRODUTIVO. INVASÃO. ESBULHO. MOVIMENTO DOS SEM TERRA. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS (CPC/73, ART. 921, I). COMPROVAÇÃO DO ESBULHO POSSESSÓRIO (CPC/73, ART. 333, I). RESISTÊNCIA DOS INVASORES À ORDEM JUDICIAL, DESDE A LIMINAR. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. APURAÇÃO DO QUANTUM DEBEATUR EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. CABIMENTO. RECURSO PROVIDO.

I – Hipótese de conflito fundiário, com invasão de terras promovida por integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) no Estado do Paraná, fato público e notório à época, com dificuldade quase intransponível no cumprimento do mandado liminar de reintegração de posse, o qual só foi cumprido com a prolação da sentença de procedência da reintegratória, quase um ano e meio após, tendo sido acionada inclusive a Polícia Militar para tentativa de cumprimento da ordem judicial.

II – Ao longo do ano e meio de tentativas de cumprimento da liminar e de citação dos réus, as autoras informaram, pormenorizadamente, ao Juízo, a depredação de benfeitorias no imóvel e de maquinário existente na fazenda, bem como a morte de parte do gado, além de a situação impedir o plantio para nova safra, causando transtornos e prejuízos aos arrendantes da terra. Informaram também os insistentes requerimentos de medidas urgentes às autoridades policiais, que, entretanto, foram infrutíferos.

III – Nesse contexto, apesar de os prejuízos causados pelo esbulho praticado não estarem precisamente quantificados, em razão da impossibilidade decorrente da situação de violência e ameaças criada e sustentada pelos invasores do imóvel rural produtivo, as autoras observaram o disposto no art. 333, I, do CPC/73, dentro dos limites que a situação de fato permitia, desincumbindo-se do ônus da prova dos fatos constitutivos de seu direito à indenização.

IV – Merece reforma o v. acórdão recorrido, que premia a violência e resistência dos promovidos, ao negar o pedido indenizatório sob o entendimento de que os danos decorrentes do reclamado esbulho possessório deveriam ser pormenorizados e provados no curso de processo de conhecimento, uma vez que não se presumem. No presente caso, tal importou negar a licitude da cumulação do pedido possessório com o de perdas e danos (CPC/73, art. 921, I), bem como a ampla reparação dos notórios prejuízos sofridos pelas autoras.

V – Tratando-se de imóvel rural produtivo, é evidente que a violenta ação desencadeada pelos réus causou gravíssimos prejuízos materiais aos proprietários, tanto em razão de atos destrutivos de bens como em função da longa privação do empreendimento tomado à força. Resta, apenas, apurar-se o montante do prejuízo, mas a existência deste, nas circunstâncias, é inegável.

VI – Recurso especial provido, reconhecendo-se a ocorrência dos danos causados pelos promovidos ao patrimônio das autoras, devendo proceder-se à apuração do quantum debeatur em liquidação de sentença, nos próprios autos.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Quarta Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti (Presidente), Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 03 de maio de 2016(Data do Julgamento)

MINISTRO RAUL ARAÚJO

Relator

Direito Agrário

Sobre o assunto vide:

TCU identifica 578 mil beneficiários irregulares e determina a paralisação imediata do programa de reforma agrária do Incra em todo o país (Portal DireitoAgrário.com )

– Repórteres do Fantástico denunciam a farra na distribuição de terras destinadas à Reforma Agrária (Portal DireitoAgrário.com, 05/01/2016).

– Íntegra do relatório do Tribunal de Contas da União (Relatório nº: 201408383, de 19 de junho de 2015).

O tempo da reforma agrária já passou no Brasil (Portal DireitoAgrário.com, 03/04/2016)

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